Imagine um cara, um cientista, físico dos bons, dos inigualáveis, daqueles que parecem saídos de um filme de ficção dos anos 50, ou dos laboratórios das páginas de uma HQ de super-heróis, um cara que daria trabalho a Einstein num jogo de trivia, de perguntas e respostas - a vida me concedeu a honraria de conhecer um assim, Robert Lee Zimmerman.
Imagine um cara, maior ainda que o cientista, uma figuraça humana das mais grandiosas, de uma simplicidade diretamente proporcional ao seu conhecimento, das mais despojadas da vaidade e dos ranços comuns ao meio e às pessoas dos quais sempre viveu cercado - no meio acadêmico, a idolatria do próprio umbigo é praticamente um pré-requisito, um item de destaque no curriculum vitae. Zimmerman nem se lembrava de que tinha um umbigo. Disse o grande Augusto dos Anjos : o homem, que, nesta terra miserável, mora, entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera. Zimmerman era exceção. E nem digo honrosa exceção, afirmo que única. E olha que feras, bestas-feras, nunca lhe faltaram como colegas de trabalho.
Imagine um cara, já do alto de seus 60 anos de idade, em quase todos os dias da semana, ao meio-dia, ao sol a pino, a fazer cooper pelo vasto campus da Universidade, e a seu lado, esforçando-se em acompanhar o ritmo de suas passadas, Tina, sua cadela dobermann. Tina arfava, resfolegava, suava litros pela língua, e a Zimmerman nem lhe alterava a respiração, nem lhe encurvava a postura altiva, um impávido colosso, trajado só com um velho short de pano e um surrado par de tênis Bamba.
Imagine um cara, tímido que só, chegando-se a uma colega de trabalho, pela qual há algum tempo nutria discreto e secreto interesse romântico, e perguntando de chofre, sem preâmbulo nem vaselina : - quer casar comigo? E ante o olhar atônito da colega, tranquilizá-la, com seu sotaque marcadamente ianque : - não, não, não precisa responder agora, vou ali ajustar uns lasers, tabelar uns dados, você fica aí pensando, que eu já volto. A colega, a professora Adelaide, de quem também tive a honra de ser aluno, que não era boba nem nada, claro, aceitou o pedido.
Imagine um cara, ao fim do dia, em retorno ao seu lar, a dirigir seu carro pelas ruas irregulares do campus, uma, já antiga na época, Variant, toda amassada, remendada, de cor indefinível, indecifrável. No banco do carona, do passageiro, a lhe fazer as vezes de co-piloto, a fiel e indefectível dobermann Tina; no banco de trás, a esposa Adelaide.
Imagine um cara, quem sabe da linhagem direta dos irmãos Wright, a alternar-se entre dois campus, localizados em diferentes cidades, e a cobrir a distância entre eles a bordo de um avião monomotor, um simpático teco-teco projetado e construído por ele próprio. O mesmo teco-teco em que, volta e meia, transpunha continentes em visita a seus familiares, nos EUA, e com o qual já realizara diversos pousos de emergência, de aterrissagens forçadas, uma, inclusive, em pleno coração da selva amazônica.
Imagine um cara que nunca soube da existência do chão, do comum, ou, ao menos, que nunca o sentiu sob os seus pés, que sempre levitou por sobre ele feito um trem bala japonês, um cara que sempre mirou o alto e o além.
Imagine - cometa a heresia de tentar imaginar - o mundo imaginado pela mente incomum de Robert Lee Zimmerman :
Imagine um mundo só de voos,
Imagine um mundo sem montanhas altas e nevadas.
(Robert L. Zimmerman foi meu professor de Física entre os anos de 1989 e 1990, na USP - Ribeirão Preto, e foi um raríssimo privilégio ver de perto o funcionamento de uma mente verdadeiramente brilhante; muitas vezes contemplar seu raciocínio e sua lucidez aparentemente caóticos - e só mesmo contemplar, como quem embasbaca frente a uma paisagem expressionista, pois jamais seríamos capazes de alcançá-lo.
Em 06/05/2014, Robert L. Zimmerman, aos 84 anos de idade, em companhia de seu irmão, de 86 anos, colidiu com uma montanha gelada no Parque Nacional de Yellowstone, a bordo de um monomotor Mooney M20C. Devido ao mau tempo, as equipes de resgate só localizaram os corpos hoje, três semanas depois.
E Zimmerman, eu tenho certeza, não vai para o Céu. Sempre esteve por lá.
Robert L. Zimmerman (de colete com padronagem xadrez) e o irmão, Ward H. Zimmerman