domingo, 29 de outubro de 2017

Vinte e Oito

Vinte e oito anos
Dedicado à escrita
(contava com vinte e dois de nascido, quando admitido nos quadros etéreos e oníricos da empresa, quando ganhei meu crachá de poeta),
Sem contar o tempo de bicos e biscates
De free lancer
De estagiário e aprendiz de feiticeiro
De quando das redações da escola,
De quando escrevia cartas as mancheias
E a dedos calejados
(Sê-lo ou não selos?).

Vinte e oito anos
De madrugadas insones
De andar gólgotas pelas ruas escuras
De açudes de cerveja e de rum drenados
De contêiners de aspirina
De lagos de vômito nos quais se refletiam as estrelas e a Lua
De ressacas
De pés enfiados na jaca
De eterno naufrágo de barcas furadas
E de todos os desossares do ofício
Para cumprir a meta
Para atingir minha cota
Para ser o funcionário do mês.

Vinte e oito anos
De inspirados serviços prestados
E lá veio a cartinha, o bilhetinho azul :
Comparecer ao departamento de pessoal.

Vinte e oito anos 
E lá estava ela,
Calíope.
Diferente de mim,
Taõ bela, jovem, viçosa e de peitos duros
Quanto no dia em que me contratou
De quando a conheci
De quando, aliás, o perpétuo Sandman a conheceu.
Cada poema, poesia, texto
Dados à luz em sua fordista forja
Não são postos a comércio
Não alimentam o comércio barato de canções de amor.
Substituem cada célula sanguínea dela
Cada célula de colágeno
Cada fibra muscular perdida.
Cada poema, uma transfusão
Um transplante
Uma injeção de botox
Um drink preparado e servido pelas mãos de Ponce de Léon,
Um retoque de tinta a óleo em seu retrato de Dorian Gray.

Vinte e oito anos
E Calíope me diz :
- Seus serviços não mais me interessam,
Acomodou-se, abandonou a rima
Não fez especialização à distância,
Não fez cursos de capacitação nem de reciclagem
Nem participou de oficinas de poesia.
Contenção de despesas, meu caro
Contratarei três ou quatros novos poetas em seu lugar,
Cheios de espinhas, virgens, cabações
Com MBA em gestão de saraus e tudo,
E pela metade do preço.

Vinte e oito anos
E a poesia se me secou
Se me abandonou
Ventou-se de mim
Assoprou-me para fora dela.

Vinte e oito anos
E nada de aviso prévio
De seguro desemprego
De FGTS e aposentadoria
De caneta de ouro.
Nem mesmo um boquete,
Ou um cuzinho por despedida.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Velhos Amigos

Uma saudade do caralho de vocês, velhos amigos...

São velhos amigos que se encontram
Apenas para celebrar o reencontro.
Malditos sejam os motivos que os separaram,
Malditos sejam os motivos que separam
As pessoas unidas pela solidão e pela noite eterna,
A única eternamente fiel e imutável,
Confortando sob seu manto negro
Os acometidos pelo frio e pelo fel da angústia.
A fumaça e o álcool
Ajudam a restaurar as afinidades perdidas
E a ignorar as diferenças adquiridas ao longo dos anos de separação.
Então,
Os risos sepultados em algum lugar da vida
Correm fácil e desatinados
E os delírios proliferam feito ratos na imundície.
Bem-aventurados sejam os delírios
Que, de tempos em tempos, unem velhos amigos
Que, há muito, já deixaram de sonhar.
Bem-aventurados os delírios
Que ainda impulsionam velhos amigos,
Uma vez que a esperança,
Sabidamente a última que morre,
Há muito já descansa em paz.
São velhos amigos que precisam de novo se despedir :
Sejam banquete pros vermes
Os responsáveis por essa separação.
Vão todos com sorrisos nos olhos
E lágrimas covardemente escondidas nos cantos das bocas.
São velhos amigos
Que, para se encontrarem,
(desconheço sina mais triste)
São obrigados a se separar.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O Cérebro é Foda

Tenho medo de tocar-te 
(mão à tua mão). 
Medo de teus olorentos poros 
Serem ventosas exatamente complementares aos meus. 
Tenho medo de abraçar-te 
(braço a braço, perna à perna). 
Medo dos teus painosos pêlos 
Se encantarem dos meus em persa tapeçaria. 
Tenho medo da tua óptica, 
Da tua mira olhos-laser vagalumeando em meu peito. 
Medo quando tão próxima respiras, 
Quando arfas e deslizas, escorrendo do leito. 
Mas medo mesmo tenho – medo de verdade – ,
Quando falas, 
Quando explicita tuas idéias, quando dizes do teu mundo, 
Num sem-fim de combinações e jogos de palavras 
Tais e quais aos que eu faria 
Caso tivesse coragem de interromper-te 
(nunca faço : sou apenas eu falando por uma boca mais bela). 
É do que tenho mais medo: 
Nossos pensamentos em unidirecional fluxo, 
Nossos rios de serotonina em caudalosa confluência. 
Dos poros, dos pêlos, do leito, 
O paladar, o olfato e o pau logo esquecem. 
O cérebro, não! 
O cérebro é foda!

Campanha Outubro Mamilo Rosa (V)

Chamar uma amiga para transformar o exame preventivo em uma atividade menos sisuda, circunspecta e envolta em apreensão, em um momento mais relaxante e lúdico, é sempre uma boa ideia.
Marie Ann, à esquerda, e Tanya Song, à direita.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Ossos do Ofício

A famosa e famigerada região da cidade conhecida por Baixada abarca a avenida Jerônimo Gonçalves - de margens dantes guarnecidas por palmeiras imperiais -, as, que lhe são paralelas e acima, ruas José Bonifácio, Saldanha Marinho, Amador Bueno e Álvares Cabral e as, que a estas cruzam perpendicularmente, ruas Visconde do Rio Branco, Mariana Junqueira, Duque de Caxias, São Sebastião e Américo Brasiliense.
Nos auriverdes tempos do Ciclo do Café, a Baixada não era a Baixada, era o centro comercial, financeiro e cultural da recém-nascida em berço esplêndido e emergente cidade, hoje, desgraçadamente, elevada à categoria de região metropolitana.
Hotéis de luxo, cafeterias, confeitarias, alfaiates, modistas, chapeleiros, teatros, tabacarias e até um cassino compunham a topografia humana do local.
Um século depois (a cidade conta com 161 anos), não obstante a ululante decadência da região outrora nobre, o seu literal rebaixamento à Baixada, o seu estado de miséria orgânica, a múltipla falência de seus órgãos, pode-se dizer tudo da Baixada, menos que esteja às portas da morte, menos que esteja em estágio terminal, ou vegetativo.
Se não a única, a Baixada é um dos poucos setores da cidade que nunca dorme, que se mantém em vígilia durante as 24 horas do dia, pelos 365 dias do ano, ou pelos 366, que a Baixada não perdoa nem ano bissexto.
Duas distintas dimensões temporais ocupam sua circunscrição em cacos e ruínas, duas dimensões paralelas se alternam em suas carcaça e carniça corroídas e carcomidas pelos vermes do tempo. Uma durante o dia e a outra a partir do cair da noite, feito grupos de funcionários que trocam de turno em uma fábrica que nunca descansa suas fornalhas e chaminés.
Durante o dia, a Baixada abriga uma caótica zona de estabelecimentos comerciais, destaque dado às inúmeras lojas de bicicletas, motocicletas e de componentes eletrônicos, fora o atropelo insano dos vendedores ambulantes, que se alastram pelas calçadas e ruas feito tiririca, um simulacro da rua 25 março, uma pequena Chinatown, uma desgraça.
Caído o sol, uma outra zona assume o seu turno na Baixada, uma zona muito mais organizada que a diurna, muito mais séria : a ZBM, a famosa zona do baixo meretrício. Germinada a noite, é puta pra tudo quanto é lado e pra todos os gostos (ou desgostos, decepções) na Baixada. Um festival de horrores. Uma profusão de peitos obesos e gelatinosos, de coxas paquidérmicas e celulíticas, de barrigas que escapam e escorrem por debaixo das roupas apertadas e se acomodam e se dispõem em duas, três, quatro camadas de banha, de bocas com muito carmim e pouco dentes, de gigôlos, cafetões e cafetinas, de hotéis baratos e seus quartos de alta rotatividade, de bares pés-sujos, de viciados.
Não raro, na troca dos turnos, as duas dimensões se interceptam momentaneamente, tangenciam-se de leve. Não raro, um funcionário, por exemplo, de uma loja de componentes eletrônicos faz um serão e se demora para tomar uma cervejinha, degustar um ovo colorido, ou um salsichão em conserva, bater uma sinuca e comer uma puta. Não raro, uma puta, antes de se recolher ao seu merecidíssimo sono reparador e cicatrizante, dá uma passada em alguma loja para comprar algo de que necessite.
A conversa que peguei, de canto de orelha, ontem, quando passei pela Baixada a caminho do banco, por volta das oito, oito e meia da manhã, se deu justamente nessa hora da troca de turnos, quando os limites entre as duas dimensões ainda são indistintos e difusos.
A puta, IMC 42 e manequim incálculavel, de pé, com um toco de cigarro aceso na mão direita e uma latinha de Skol na esquerda, tatuagem de naja no entrepeitos, encostada na parede do Hotel Apolo (ambiente familiar, agora com café da manhã e wi-fi), queixava-se da vida ao rapaz que acabara de subir a porta de aço corrugado da General Bike.

- Vô te contá, bixim... tô parecendo um imã, todos caras que sobem comigo pro quarto, têm me pagado com nota de 100 reaus.
- Então, a coisa tá boa pra você - responde o rapaz a perfilar as bicicletas na porta da loja.
- Bom uma porra! Vê lá se eu tenho a obrigação de sair depois procurando troco!

Pããããta que o pariu!!! O cara toma uma cerveja, forra o estômago com uns tira-gostos, faz barba, cabelo e bigode com a puta, paga o quarto do Hotel Apolo, limpa o pau na cortina e ainda sai com troco pra 100? Anda baixíssima, a cotação da buça na Bolsa da Baixada. E a das pregas no pregão eletrônico? Deve tá um desrespeito.
É, caro leitor do Marreta, a vida não tá fácil pra ninguém. Nem para as mulheres de vida fácil. Ter que levantar toda suada, melada, esfolada, vestir as calçolas, ajeitar as tetas no sutiã, equilibrar-se ainda de pernas bambas no salto alto e sair pelos corredores do Hotel Apolo a catar troco.
Passado o acesso de riso, penalizei-me da puta. Tanto que logo me ocorreu uma maneira de ajudar a essas meninas. O dono do Hotel Apolo, o gerente do zonão, poderia adotar um sistema de apoio parecido ao do supermercado aqui perto de casa. No mercado, quando os operadores de caixa precisam de troco, ou de bobina nova para a máquina, ou de ir ao banheiro, eles acendem uma luz instalada num poste lateral e acima do caixa. Imediatamente, vem outro funcionário e traz o troco, a bobina etc. Bastaria a puta acender uma luz (vermelha, óbvio) colocada no alto da porta e uma outra puta viria lhe trazer o troco, mais camisinhas, ou o que fosse necessário.
Acho até que se voltar a ver a tal puta, sugerirei a ela o prático sistema. O problema será se ela quiser me agradecer efusivamente pela melhora da logística de seu trabalho. Aí, quem ficará sem moeda de troca, serei eu.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

terça-feira, 10 de outubro de 2017

E Pra Ver Se o Cu Tá Limpo?

Pensei já ter visto de tudo no quesito papel higiênico, no setor do bem-estar e dos agrados ao cu : já vi papel higiênico Lavanda de Provence, em tom lilás desmaiado, que promete trazer ao seu banheiro e às sua pregas a atmosfera perfumada, óbvio, da região de Provence; um outro com "alto relevo de flores, perfume e uma micro-textura" que, segundo o texto da embalagem, proporciona aos seus felizes utilizadores "a suavidade de uma pétala de rosa"; outro com extrato de pêssego em suas folhas duplas alaranjadas e, o top do top, um que contém óleo de amêndoas, o que proporciona, segundo o fabricante, "maciez superior e um cuidado maior com a pele", na sua delicada fórmula encontramos Vitamina E.
E olha que eu nunca nem entrei em lojas especializadas, nunca entrei numa boutique ou numa outlet das pregas, numa delicatessen do cu. Só mesmo em supermercados comuns, populares.
Nas décadas de 1960, 1970, era comum a expressão "dar tratos à bola" (a Rita Lee gravou um bom LP com esse título), a qual significa pôr a cabeça para funcionar, matutar sobre uma questão, queimar a mufa, fazer exercícios de pensamento e intelectualidade. Hoje, pelo visto e narrado, o povo dá tratos é ao cu.
Pudera. Em tempos de redes sociais, de likes, de curtidas, de bundas e peitos cheios (nada contra, digo de passagem) e de cabeças vazias, de postar  e repostar "pensamentos" pré-fabricados - o tal facebook, a mim, parece uma versão digital e virtual dos para-choques de caminhão -, ninguém mais dá tratos à bola. Dá tratos ao cu. Afinal, cada qual cuida do talento e do patrimônio que lhe são mais valiosos.

Pensei já ter visto de tudo no quesito papel higiênico... Mas, ah, o mercado do refinamento e da sofisticação. Ah, a indústria da futilidade. Ah, o  nicho da viadagem. Sempre me surpreendem. Negativamente.
Ontem, fui ao mercado comprar umas coisinhas e passei pela prateleira de papel higiênico. Compro o neutro de folha dupla. Mas é só por causa da esposa. Quando era solteiro e morava sozinho, eu comprava o papel higiênico Primavera. Os mais velhos vão se lembrar, era aquele cor-de-rosa, feito de papel áspero e grosseiro, para machos da antigas. O Primavera era multifunção, limpava, coçava e depilava. Pois estava eu, então, a achar o folha dupla mais barato, quando me deparei com ele : O Personal Vip Black. Um papel higiênico preto. Preto feito piche. Feito breu. O preço também era uma nota preta.
Choque e estranheza passados, voltou-me a razão e o senso crítico : como é que o sujeito que usa o Personal Vip Black faz pra saber quando é que o cu tá limpo? Que ainda não está a precisar de uns retoques finais? Depois da obra concluída, passamos o papel no toba e vamos sempre dando aquela conferida : marrom intenso na primeira passada, um castanho na segunda, um bege-amarelado depois e, enfim, o papel sai branco. E com o Personal Vip Black? Como saber se o cu tá limpo?
O único jeito é o baitola, é o viadinho garantir (e se divertir) com um potente jato de um bom chuveirinho! 
Pãããããta que o pariu!!!!

Em tempo : aos saudosistas, o papel Primavera, o papel higiênico do cabra macho. Tempos em que quem tinha cu tinha medo; inclusive do papel higiênico.

domingo, 8 de outubro de 2017

Campanha Outubro Mamilo Rosa. Ou, Porque um Belo Par de Tetas Vale por Mil Palavras

Engana-se, e comete o imperdoável do mau juízo e da língua grande, aquele que julga e sai por ai a dizer que o Azarão não é um entusiasta das campanhas nacionais de conscientização, que buscam - trabalho de Sísifo - educar minimamente o semianalfabeto, e orgulhoso disso, povo brasileiro - a devoção à ignorância é nosso patrimônio cultural imaterial.
Equivoca-se, e comete os crimes da má-fé e da maledicência, aquele que pensa e sai a ventar por ai que o Azarão não é um apoiador, quase um mecenas, das causas e das questões sociais. 
Comete perjúrio, jura em falso sobre a Bíblia e pela mãe mortinha atrás da porta, os sacripantas que saem a disseminar por aí que o Azarão não é sensível às mazelas e às agruras desse povinho sempre de olho não em oportunidades reais de trabalho e aprimoramento pessoal, mas sim em regalias e privilégios - bolsas e cotas a mancheias.
Pois comam a própria merda e sufoquem-se no próprio vômito peçonhento, detratores e haters do Azarão. Declaro-me - e o mostrarei - um aguerrido militante de toda e qualquer ação, governamental, ou da iniciativa privada, que venha ao encontro dos anseios da população, que continue a dar ao povo, de mão beijada, caritativamente, tudo aquilo pelo que ele deveria trabalhar para conseguir, um empedernido defensor de quaisquer atitudes filantrópicas e voluntárias que perpetuem o Estado-Pai-Patrão e a preguiça do brasileiro.
E, de todas as campanhas de conscientização, a minha preferida, a que ensina a mulherada a zelar pelas e a cuidar das próprias tetas : o Outubro Rosa.
Ao longo do resto deste mês, religiosamente, não me furtarei à função socioeducativa do Marreta : incentivarei a mulherada ao autoexame das mamadeiras, ao toque, ao massagear. E sem explicações de cunho médico ou mais delongas. Que brasileiro não lê nem instruções de uso de supositório (aí, quando o médico diz que é para ele enfiar no cu, ele processo o médico, reclama do sistema público de saúde).
A Outubro Mamilo Rosa será uma campanha puramente visual. Exclusivamente pictórica, como era a linguagem do homem rupestre, dos povos pré-escrita. Afinal, um belo par de tetas vale por mil palavras. No caso, por duas mil.
A seguir, a primeira musa da Outubro Mamilo Rosa, Danielle Sharp.
Tranquilizem-se, no entanto, os leitores mais visionários do Marreta, dados a fazer previsões sobre futuras postagens : no temido Novembro Azul, asseguro-vos, não colocarei, em hipótese alguma, fotos de cus cabeludos a levar dedos grossos e enluvados.
Que engajamento também tem limite!

terça-feira, 3 de outubro de 2017

A Frase

Meu amigo JB, dono, presidente, acionista majoritário e ombudsman do Blogson Crusoe, nos últimos dez dias, autoinfligiu-se uma tarefa hercúlea : sintetizar em 20 postagens o melhor de Millôr Fernandes. 
Millôr foi o da Vinci brasileiro, jogava nas onze posições e ainda fazia as vezes do juiz, dos bandeirinhas, dos gândulas, dos repórteres de campo e dos comentaristas. 
Millôr foi desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, poeta, tradutor, cronista, jornalista e, a sua faceta que mais me agrada, e, aparentemente também ao JB, um frasista de alto quilate. 
Ser um bom frasista, na minha opinião, é difícil pra caralho! Sintetizar em uma única oração, no máximo em dois ou três períodos, verdades atemporais e beirando o absoluto, não é tarefa pra qualquer gênio. Muitas vezes, o cara escreve um livro com 500, 600 páginas; aí vem o frasista e diz tudo o que ele disse em duas linhas. E Millôr foi desses gênios. 
Paradoxalmente, a melhor coisa que já li sobre o poder da frase não foi do Millôr, nem foi uma frase, foi uma crônica. De outro gênio de nosso humor/jornalismo/literatura, Luis Fernando Veríssimo. Sua crônica, A Frase, que reproduzo abaixo, é magistral, irretocável.
Essa é para você, JB 

A  frase
por Luis Fernando Veríssimo

O melhor texto de publicidade que eu já vi era assim: uma foto colorida de uma garrafa de uísque Chivas Regal e, embaixo, uma única frase: “O Chivas Regal dos uísques”.
O anúncio é americano. Em algum anuário de propaganda, desses que a gente folheia nas agências em busca de idéias originais na esperança de que o cliente não tenha o mesmo anuário, deve aparecer o nome do autor do texto. No dia em que eu descobrir quem é, mando um telegrama com uma única palavra. Um palavrão. Que tanto pode expressar surpresa quanto admiração, inveja, submissão ou raiva. No meu caso, significará tudo ao mesmo tempo. Palavrão PT Segue carta explosiva PT Abraços etc.
Duvido que o autor da frase receba o telegrama. O cara que escreveu um anúncio assim não recebe mais telegramas. Não atende mais nem a porta. Não se mexe da cadeira. Não lê mais nada, não vê televisão, não vai a cinema e fala somente o indispensável. Passa o dia sentado, de pernas cruzadas, com o olhar perdido. Alimenta-se de coisas vagamente brancas e bebe champanhe brut em copos de tulipa. Com um leve sorriso nos cantos da boca.
Foi o sorriso que finalmente levou sua mulher a pedir o divórcio. Ela agüentou tudo. O silêncio, a indiferença, as pernas cruzadas, tudo. Mas o sorriso foi demais.
“Bob (digamos que o seu nome seja Bob), você não vai mais trabalhar?”.
Sorriso.
“Nunca mais, Bob? Há uma semana que você não sai dessa cadeira”.
Sorriso.
“Bob, o Bill disse que o seu lugar na agência está garantido, quando você quiser voltar. Mas eles não podem continuar pagando se você não voltar”.
Sorriso.
“As crianças precisam de sapatos novos. O aluguel do apartamento está atrasado. Meu analista também. Nosso saldo no banco se foi com a última caixa de champanhe que você mandou buscar”.
Sorriso.
“Sabe o que estão dizendo na agência, Bob? Que o seu texto para o Chivas Regal foi pura sorte. Que foi genial, mas você não faz dois iguais àquele. Você precisa ir lá mostrar para eles, Bob. Faça alguma coisa, Bob!”
Bob fez alguma coisa. Descruzou as pernas e cruzou outra vez. Sorrindo.
A mulher tratou do divórcio sozinha. Na hora das despedidas, ele inclinou-se levemente na poltrona para beijar as crianças mas não disse uma palavra. Continua sentado lá até hoje.
Levanta-se para ir ao banheiro, trocar de roupa e telefonar para fornecedores de enlatados e champanhe. Os que ainda lhe dão crédito. O resto do tempo fica sentado, as pernas cruzadas, o olhar perdido. E o sorriso.
Uma faxineira vem uma vez por semana, limpa o apartamento (há pouco o que limpar, ele não toca em nada) e vai embora. Abanando a cabeça. Pobre do sr. Bob. Um moço tão bom.
Os amigos preocupam-se com ele. A agência lhe faz ofertas astronômicas para voltar. Ele responde a todos com monossílabos e vagos gestos com o copo de tulipa. E todos vão embora, abanando a cabeça.
Contaram que a mesma coisa aconteceu com o primeiro homem a escalar o Everest. Para começar, quando chegou no topo, no cume da montanha mais alta da Terra, ele tirou um banquinho da sua mochila, colocou o banquinho exatamente no pico do Everest e subiu em em cima do banquinho! O guia nativo que o acompanhava não entendeu nada. Se entendesse, estaria entendendo o homem branco e toda a história do Ocidente. De volta à civilização o homem que conquistou o Everest passou meses sem falar com ninguém e sem olhar fixamente para nada. Se tinha mulher e filhos, esqueceu. E tinha um leve sorriso nos cantos da boca.
Você precisa entender que quem escreve para publicidade está sempre atrás da frase definitiva. Não importa se for sobre uísque de luxo ou uma liquidação de varejo, importa é a frase. Ela precisa dizer tudo o que há para dizer sobre qualquer coisa, num decassílabo ou menos. Tão perfeita que nada pode segui-la, salvo o silêncio e a reclusão. Você atingiu o seu próprio pico.
Bob tem duas coisas a fazer, depois de passada a euforia das alturas. Uma é voltar para a agência, mas com outro status. Por um salário mais alto, apenas perambulará pelas salas para ser apontado a novatos e visitantes como o autor da frase, aquela.
“Você quer dizer… A frase”“
“A frase”.
Outra é começar de novo em outro ramo. Com uma banca de chuchu na feira, por exemplo. Ele não precisa conquistar mais nada, é o único homem realizado do século.
Mas por enquanto Bob só olha para as paredes. De vez em quando, diz baixinho:
“O Chivas Regal dos uísques…”
E aí atira a cabeça para trás e dá uma gargalhada. Depois descruza as pernas e bebe mais um gole de champanhe.
(Extraído do livro da seleção de crônicas do livro “Comédias da Vida Privada”, de L.F. Veríssimo, pág. 49, Edit. L&PM)

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Pesquisa Datafolha Revela : Quase Metade dos Brasileiros Gosta de Ladrão

Uma pesquisa do Datafolha divulgada hoje, que perguntava se Lula deveria ir em cana pelo que já foi revelado na Lava-Jato, revelou:

54% são favoráveis à prisão do Nove-Dedos;
40% são contra;
5% não souberam responder.

Os que não quiseram responder, tenho certeza, tiveram vergonha de dizer que querem Lula solto, que apoiam o maior saqueador que o Brasil já teve.
Ou seja, quase metade dos brasileiros gosta de ladrão.
A conta não fecha, a soma totaliza 99%. Não me perguntem onde o Datafolha enfiou o 1% sumido. Só não digo que foi o Lula que o surrupiou porque para receber 1% de comissão, de propina, ele nem se digna a tirar o rabo indolente da cadeira. 
Ou o Moro prende o sapo barbudo, ou ele se candidata e ganha de novo. Legitimamente, com o voto do povo. Povo safado e vagabundo vota em safado e vagabundo. E duvido que haja povo no planeta que mais faça jus a esses adjetivos.

domingo, 1 de outubro de 2017

O Homem Que Nunca Precisa de Despertador

O homem que nunca precisa de despertador nunca deixa libertar-se o grito de seu despertador - um rádio-relógio de visor azul-césio. Acorda e o desativa sempre antes. O despertador do homem que nunca precisa de despertador nunca extravasa pela manhã o berro contido, represado, coagulado durante a madrugada. O homem que nunca precisa de despertador também não.
O homem que nunca precisa de despertador, em todos os dias úteis (embora jogados fora), às cinco da manhã, cruza por sobre o rio de sangue pardo e ralo que carrega o nome da cidade. Sujo, mau cheiroso e, não obstante, e talvez por isso mesmo, repleto de vida - nenhuma vida surge e/ou se sustenta no estéril, no asséptico, no banheiro desinfetado com amônia e água sanitária, na boca enxaguada, três vezes por dia, com Listerine, no pau e na buceta depilados e lavados imediatamente após a foda.
O lodo podre e ponceleônico, as algas a dançar, odaliscas sinuosas do jardim submerso dessa Babilônia. A, de todos os dias, garça-branca a granjear o seu desjejum; os menos presentes corós-corós; e o, que pouco dá as caras, cara de poucos amigos, martim-pescador. O homem que nunca precisa de despertador gosta dele, especialmente.
O homem que nunca precisa de despertador trabalha (o que não implica em produzir) o dia todo. Em ponto morto. Na banguela. O homem que nunca precisa de despertador trabalha rodeado por pessoas que nunca acordam. O homem que nunca precisa de despertador sonha o dia todo com a hora de dormir. Em travesseiros voadores de Bagdá, em casulos de bichos-da-seda. E quando dorme, o homem que nunca precisa de despertador tem pesadelos em acordar.
O homem que nunca precisa de despertador nunca almoça, ou janta. Abastece-se. Frentista corrupto de si mesmo. Põe a queimar alimentos adulterados, batizados, com data de validade vencida : o pão de cada dia veiado de mofo e de bolor.
O homem que nunca precisa de despertador nunca falta ao serviço, não desrespeita as normas, não infringe as leis, não incomoda os vizinhos com música alta, cede lugar a idosos no coletivo, não contrai dívidas nem abre crediários, não deve nada a ninguém e em ninguém nunca deu calote, paga seus impostos, separa seu lixo para reciclagem, fecha a torneira enquanto lava a louça, escova os dentes ou se ensaboa no banho, doa sangue amiúde.
Um único delito. Um único pecado. Um único escuso. Que é para se lembrar de que é humano. Em todos os dias úteis (embora jogados fora), às cinco da manhã, três quarteirões adiante da ponte (a por sobre o rio sujo, o das algas, o da garça-branca, o dos corós-corós, o do martim-pescador, a resplandecerem, fogos-fátuos, do mefítico), ele entra no supermercado 24 h e compra e toma um latão de cerveja. Seu único delito. Seu único pecado. Que, na prática, nem assim podem ser configurados. Para que sejam configurados em delito, em pecado, a condição básica é que alguém os testemunhem. Ou o homem, ou Deus - que, dizem, para isso foi criado, para que o pecador saiba (pense, acredite) que, ainda que fuja às vistas e à justiça dos homens, estará sempre sob as câmeras vigilantes de Deus. 
Quanto aos homens, às cinco da manhã, só há o homem que nunca precisa de despertador pelas ruas ainda bocejantes e cobertas pelo escuro a desbotar. Quanto a Deus, o homem que nunca precisa de despertador sabe que, há muito, o Todo-Poderoso perdeu-lhe o interesse.
O homem que nunca precisa de despertador - um rádio-relógio de visor azul-césio, no qual também nunca sintonizou nenhuma AM/FM - nunca precisou, igualmente, da batedeira (quando, em raro, tem vontade de um pedaço de bolo de fubá, o compra à padaria), da cafeteira elétrica (coa seu amargo café num puído coador de pano), do micro-ondas (gosta de comida fria, ou, ao menos, não se importa, não lhe faz diferença), da TV (a última novela a que assistiu foi Roque Santeiro; o último filme, uma reprise no Corujão, Um Dia de Fúria).
Mas a todos mantêm guardados. Na esperança - quem sabe, quem poderá saber? - de um expresso tomado com amigos (para os quais não telefona) enquanto o bolo de fubá com sementes de erva-doce cresce no forno; ou de reassistir, na Sessão da Tarde, em um dia chuvoso e choroso, ao O Pássaro Azul (mas se contentaria com  Curtindo a Vida Adoidado) acompanhado por um enorme saco de pipoca de micro-ondas.
Mas, sobretudo, tem predileção e conserva - lustrado, desempoeirado, fios e bateria de emergência sempre em dia - o seu rádio-relógio, o de visor azul-césio. Na esperança de uma noite de sono tranquilo, de um pulo ao abismo da inconsciência bem atado por uma corda de bungee jump aos tornozelos, de um flerte com a morte.

Engatando a Terceira e Prontinha Para Dar a Ré

Estou a tentar minha habilitação, a porra da CNH. E estou odiando. Mas pensando bem...

A Lógica Canalha da Esquerda