sábado, 18 de janeiro de 2014

As Cláudias Ohanas de Plástico Não Morrem

Há três meses, a ex-deusa pentelhuda Claúdia Ohana declarou : Eu raspo a buceta !
Ah, Ohana, que pena, que desperdício... debaixo dos caracóis de seus cabelos,  um sorriso e a vontade de ficar mais um instante.
Deixou órfão um séquito de fiéis adoradores, de mãos igualmente cabeludas.
E o que é pior : jogou a toalha, foi à lona no MMA da depilação. Concedeu a vitória cabal à canalhada da ridícula estética do "limpinho". 
Ao menos, foi o que me pareceu à época, que o destino de todos os pentelhos do mundo estava selado. Que a queda de Ohana houvesse, também, decretado a extinção das confortáveis e painosas moitas pubianas, o melhor travesseiro do mundo para encostar a cabecinha e chorar.
Porém, a despeito de todo o meu pessimismo, de todo o meu derrotismo, e apesar do duro golpe sofrido pela humanidade macha das antigas com a capitulação de Ohana, há os resistentes, os antes de tudo uns fortes, os que, em períodos de adversidade, garantem a sobrevivência da espécie, os que estoicamente se opõem à ditadura das Barbies - mulher com buceta raspada e escanhoada fica igual à boneca Barbie.
Começam a despontar sinais de resistência no front, no nu frontal. Sinais ainda tímidos e isolados, é verdade; ações pontuais de antagonismo, quase que de guerrilha, contra a hegemonia das Barbies. Um novo e incipiente movimento, apenas a engatinhar, mas que já renova a minha fé num futuro mais arborizado.
Uma dessas células de resistência à xavasca depilada é a rede de lojas estadunidense American Apparel. O dia dos namorados lá deles, dos filhotes do Tio Sam, é em 14 de fevereiro, e as vitrines temáticas das American Apparel estão dando o que falar nas redes sociais, o antro da geração acéfala e politicamente correta (difícil, nesse caso, é identificar a causa e o efeito, se essa geraçãozinha de merda que aí está é acéfala por ser politicamente correta, ou politicamente correta por ser acéfala).
O twitteiros, instangreiros, facebookeiros, ou seja, toda a flora intestinal de idiotas que habita as redes sociais está a considerar de mau gosto e apelativas as vitrines das American Apparel.
A rede de lojas está exibindo manequins de plástico com bastos pelos pubianos à mostra, em profusão, fugindo dos limites elásticos das lingeries transparentes. Não bastasse, para melhorar ainda mais, para matar do coração os machos das antigas e, de nojo, os viadinhos metrossexuais, os mamilos dos manequins foram realçados, estão acesíssimos, faróis de alexandria a iluminar mares nunca dantes navegados. Uma delícia. Óculos também foram adicionados aos manequins, item pelo qual muitos acalentam fetiche, aquela coisa da intelectual reprimida, falsamente feiosa, que vira uma ninfomaníaca quando solta o cabelo, tira os óculos, abre a blusa abotoada até o pescoço e revela um par de peitos gigantes.
Acusada pelos corretinhos de rosca frouxa de realizar "pornografia estilizada", a American Apparel, em comunicado à imprensa, disse que a ideia é valorizar e celebrar a beleza natural feminina. E eu concordo! Pãããta que o pariu se concordo!!!
"De por entre os pelos viemos, para entre os pelos iremos retornar." É bíblico, porra! Tá lá na Bíblia do Onanista, em algum capítulo, em algum versículo, de suas páginas grudadas.
Já falei isto várias vezes aqui, quem tem buceta lisinha ou é criança, ou é justamente a boneca Barbie. E quem tem paudurescência em xavasca "carinha de bebê" só pode portar francos pendores pedófilos.
E a American Apparel não se limita a exibir os pentelhos sintéticos dos manequins plásticos. Suas modelos de carne e osso - e pelos - também não escondem suas vastas matas.
E aí? Preferem dar uma trepadinha com uma peludinha dessa ou com a boneca Barbie?
Quem sabe - a esperança do punheteiro é a última que amolece - alguém não põe a American Apparel e a Cláudia Ohana em contato? Quem sabe, por um contrato milionário, la Ohana não abandone o prestobarba, a cera quente, e volte às suas bucólicas e arcádicas origens?

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Canção da Despedida

- Adeus! - Ela, sempre dada aos melodramas, aos exageros, ao falar e ao gesticular como vivesse livre no centro de um teatro de arena grego, sempe ávida por uma plateia.
- Até mais. - Ele, sempre dado a diques, ao minimalismo, ao falar sem gesticular, contido, porém, cortante, de defesa, como vivesse acuado no centro de um coliseu, sempre ávido em se isolar do bando.
- Adeus! - insiste Ela, talvez triste, talvez eufórica, talvez aliviada, talvez esperançosa.
- Até mais. - apenas repete Ele, talvez nada, sem insistência nem provocações nem ironias; só a constatar e a saber de longa data que o ranço e o azedume mal resolvidos não se dissolvem - tampouco se tornam palatáveis - com viagens para terras distantes, afastamentos, abduções alienígenas ou períodos de coma induzido.
Para ouvir Canção da Despedida, de Leoni, é só clicar aqui, no meu poderoso, embora cansado, MARRETÃO.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Boca da Madrugada

Boca da madrugada :
A hora que tenho para recolher as palavras
- essas caricaturas do pensamento -
Que vou deixando espalhadas pela casa ao longo do dia
Feito cueca no sofá
Meias ao canto da cozinha
Toalha molhada em cima da cama
Louça suja a acumular na pia
Brinquedo de filho a tornar em campo minado a sala e o corredor.
Hora que eu tenho para recolhê-las
Desamassá-las, pô-las ao varal
Passá-las a ferro
Organizá-lás, engavetá-las
E enfileirá-las
Num coerente texto
Numa ansiosa folha de papel em branco.
Mas que nada!
À boca da madrugada,
A cabeça está embotada
A mão, de juntas petrificadas.
Estou mais espalhado, fragmentado
Mais feito em poeira e ácaros
Que as palavras que fiz esperar o dia todo.
E aí vem o cansaço
- gari do cotidiano e da rotina -
E me varre, me junta
Me amontoa
Me põe prostrado numa cadeira na sacada
Com uma caneca estampada com a bandeira da Argentina,
Cheia de cerveja barata,
Que deita manta em meus pés gelados, envelhecidos
Repuxados por cãimbras
E, suspeito, flertando com uma artrite reumatoide.
E me põe prostrado
De frente para a Lua quase cheia,
Que me folheia a prata
Me acalanta com sua telepática luz de ninar.
E aí já era o texto
E aí fugiu o que eu ia escrever
Fugiu sei lá pra onde
E pouco importa
Pois sei que não vai voltar.
E aí logo vem um novo dia
- durmo cada vez menos -
Com mais palavras esparsas, confusas
Inseguras, desperdiçadas.
Com mais cansaço :
Concentrado, convicto
Cheio de si,
Que nunca erra o alvo.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Rock Balboa vs. Jake LaMotta (Ou : Os Velhinhos Se Divertem)

Não tem nada de Muhammad Ali x Joe Frasier, nada de Rocky Marciano x Joe Louis, nem de Éder Jofre x Harada, tampouco de Mike Tyson x Evander Holyfield.
A luta que passará a figurar como o grande embate do século, deste e do passado, de toda a história do boxe, aliás, será a de Rocky Balboa, o Garanhão Italiano vs. Jake LaMotta, o Touro Indomável. E haja coice, chifrada e testosterna.
Sylvester Stallone, 67 anos, e Robert de Niro, 70, se enfrentam nos ringues da telona do cinema em Ajuste de Contas. Não vestirão, dessa vez, o couro dos boxeadores que eternizaram, Rocky Balboa (da hexalogia Rocky) e Jake LaMotta (de O Touro Indomável), respectivamente.
A ideia de dois setentões num ringue pareceu estranha até a Stallone, que encarnou Rocky Balboa pela última vez em 2006, quando completava 60 anos. Disse : "Não tinha intenção de voltar ao ringue em outro filme de boxe. Eu no ringue? Nesta idade? Isso não teria a menor credibilidade, afinal estou chegando aos 160 anos. E o que aconteceu? Bem, Robert De Niro me telefonou".
Depois de muita conversa, o garanhão italiano concluiu : "O boxe, afinal, é uma metáfora da vida. A vida te derruba. O que faz uma pessoa ser bem-sucedida é ela conseguir se levantar de novo. O que realmente me atrai em roteiros hoje é uma mensagem de segunda chance."
O boxe é uma metáfora da vida... Pããããta que o pariu!!! Só por essa fala já dá para antever a papagaiada que vem por aí. Puro chavão, pura filosofia barata - aliás, o único tipo que há.
Stallone é Henry "Razor" Sharp e de Niro, Billy "The Kid" McDonnen, arqui-inimigos que  ganham a chance de voltar a calçar suas luvas e se enfrentar três décadas depois de seu último confronto. Provar, definitivamente, qual o melhor dos dois.
Não é um filme de boxe, garante Stallone, é sobre o envelhecimento, e traz, garante o ator, até uma mensagem, a de que você não precisa entregar os pontos só porque envelheceu. Puta mensagem! Também não é um filme sobre um homem massacrar o outro, são biografias, histórias de vida, de dois homens frustrados com o término mal resolvido de suas carreiras, homens que querem recuperar um nível emocional. Pãããta que o pariu!!! Filosofia e psicologia a serviço dos parachoques de caminhão!!!
Chavão puro, lugar-comum até não poder mais, saudosismo e sentimentalismo dos mais rasteiros. Mas não é disso que o cinema vive? Não é disso, e por isso, que as pessoas vivem?
A idade avançada dos dois lutadores é explorada massivamente nas piadas do filme e, óbvio, as referências aos clássicos "Rocky - Um Lutador" e "Touro Indomável" são constantes. E inevitáveis. E obrigatórias, o público sairia decepcionada se não as houvesse.
 Ajuste de Contas parece ser um longa-metragem de clichês A começar dos próprios protagonistas, que hoje são clichês de si mesmos. 
Robert de Niro não é mais o ator de Taxi Driver, de o Franco Atirador, de o Touro Indomável, de o Cabo do Medo, de Os Bons Companheiros, ator dos mais versáteis e plásticos que já passaram por Hollywood : é só Robert de Niro, e é Robert de Niro quem as pessoas pagam para ir ver, e ele que se recuse a sê-lo, fica sem emprego.
Stallone também não é mais o ator de Rocky,  ou de Rambo, é só Stallone. Se bem que nesse caso, justiça seja feita, Stallone nunca foi ator de nada, nunca  interpretou sequer uma personagem no cinema. Os atores eram o Rocky e o Rambo. Eles é que interpretaram o Stallone nas telas. Stallone foi interpretado seis vezes por Rocky Balboa e quatro vezes por John Rambo. Nesse aspecto, a carreira de Stallone é mais coerente e sólida que a de de Niro, não houve decadência em Stallone.
Não tá no gibi o que vai ter de velhinho com ilusões de eterna juventude enfrentando fila no cinema, de bengala, de andador, de fralda. Filme de autoajuda para a terceira idade. Campeão de audiência nos DVDs dos asilos. Muitos da terceira idade não conseguem nem limpar a própria bunda, e Stallone e de Niro ficam aí, pondo-lhes caraminholas na cabeça, dizendo que podem resgatar isso, aquilo e aquiloutro de suas existências, que podem ter uma segunda chance e lutar um último e decisivo round de suas vidas. Segunda chance, depois dos setenta? Só se houver reencarnação.
Se eu vou assistir a Ajuste de Contas, o filme que promete ser o maior amontoado de besteiras do ano? Pãããããta que o pariu!!!! É claro que eu vou!!! Quem resiste aos canastrões Rocky e Jake LaMotta, a Stallone e de Niro? Quem resiste à maior luta desde Freddy Krueger x Jason? E, principalmente, quem resiste em não querer saber do resultado desse combate?
Alguém arrisca um palpite? Eu acho que dará empate. E que depois da luta, depois de resolvida a treta entre eles - essas viadagens de macho que tem que provar que é melhor que o outro -, os dois vão sair pra tomar cerveja, encher a cara, exercitar a incontinência urinária.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Mimetismos (7)

A flor acima pertence a uma planta do gênero Clitoria. Isso mesmo. Clitoria.
É a versão feminina da flor do Jorge Tadeu!
E tem clitória de todas as cores e etnias. Rosadas como a da foto acima, roxas, amarelas...
Cheirosíssima, a clitória. De odor doce e pegajoso. Inconfundível e inesquecível. Daqueles odores que se nos entranham no olfato, que nunca mais nos sai das ventas. Se o cara tiver bigode, então...

Cartão-Postal

Eu já conheci
Todos os telhados
De todos os  prédios da cidade.
Fui seus zeladores,
Suas antenas, seus gatos no cio
Suas rachaduras, suas goteiras
Seus desabamentos.

Eu já marquei território
Por todas as suas ruas,
Por todas vielas e travessas de basalto do velho centro.
Mijei, vomitei, chorei,
Inundei todos os seus bueiros e galerias pluviais.
Deixei mais garrafas vazias pelas suas calçadas
Que cães deixam merda.

Hoje,
Olho-a como a uma paisagem de um outro país,
Sem som, sem cheiro, sem dor.
Como um velho caduco a uma foto da primeira namorada,
Mais um registro histórico que propriamente uma memória,
Um amor.
Como um turista em minha própria casa.

Hoje, 
Eu que já lhe fui relevo,
Terremoto,
Cordilheira,
Coágulo,
Atmosfera,
Estio e monção,
Olho-a, 
Bêbado,
De minha sacada com tela de proteção,
No escuro,
Como olho a um slide mofado,
Como a um cartão-postal.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Professores à Beira de um Ataque de Nervos

Para quem mantém um blog com postagens quase que diárias - e o Marreta caminha para cinco anos de existência -, muito mais importantes e motivadores que os números de acessos recebidos no dia, são os comentários. São eles - concordantes, discordantes, críticos ou elogiosos - que mostram que alguém realmente leu o que escrevemos. Leu, e mais importante, se deu ao trabalho de perder um tempo maior para escrever sobre.
A maioria são comentários curtos, truncados, mal escritos, bem ao triste estilo reinante na internet. Porém, raras vezes, muito de vez em quando, sou brindado com comentários muito bem escritos, com forma e conteúdo, comentários de quem realmente gosta de ler e, por conseguinte, sabe escrever.
Ontem, recebi um desses comentários. De uma pessoa que se assina S. Rodrigues, professora de Geografia formada pela Unesp, muito bem formada, portanto. Ela estava procurando na net informações sobre um padre da cidade dela e caiu aqui no Marreta. Começou a ler e se identificou com alguns textos meus, relativos ao que, hipocritamente, se convencionou chamar hoje de Educação.
Exerci outras profissões antes da minha atual, a de professor. Profissões, teoricamente, mais cansativas, mais desgastantes, mais "braçais", menos recompensadoras. Teoricamente. Muito teoricamente. Digo que hoje, ao menos no Brasil, não há profissão mais degradante que a de professor. 
Já fui digitador, caixa de clube (trabalhava aos fins de semana, feriados, madrugadas), operador de máquina de xerox, gráfico bissexto. Mas, de qualquer forma, eram profissões. Bem definidas. Com funções, atribuições e metas claras. E tudo o que desse certo, ou errado, era de única e exclusiva responsabilidade minha, meu trabalho não dependia de nenhuma ajuda ou de complementação de outrem, e, muito menos, o erro ou a falha de outro eram atribuídos a mim : tudo dependia só de minha competência, ou da falta dela. E mais, o trabalho feito hoje, estava lá amanhã, do jeitinho que eu tinha deixado, pronto para ser continuado. Se eu tivesse, por exemplo, cinco mil cópias para rodar em offset e rodasse no dia, sei lá, três mil, quinhentas e cinquenta e seis, no dia seguinte, eu tinha certeza de que continuaria a partir da cópia de número três mil, quinhentos e cinquenta e sete. Por mais cansativas e  mal remuneradas que fossem, e elas o eram, eram profissões reais.
A de professor, não. Não há parâmetros bem definidos do que seja ser professor, atualmente; das reais obrigações do docente e, principlamente, de suas "desobrigações". E essa indefinição é, obviamente, proposital, muito bem engendrada polticamente. Assim, fica facílimo jogar de forma integral a culpa no professor pelo fracasso da educação. O professor nada pode, e de tudo leva a culpa.
O professor nada pode : não pode mais impor disciplina em sala de aula, não pode mais avaliar corretamente, não pode cobrar do aluno que ele chegue na hora, que ele entregue tarefas no dia estipulado (na verdade, nem que ele entregue as tarefas), não pode nem dar o conteúdo mínimo de sua disciplina, sob pena de ser advertido por seus superiores. 
De tudo, ele é culpado : nenhuma responsabilidade é creditada à estrutura falha, mal-intencionada, viciada  e corrompida do sistema, das leis que o regem e ao magistério, nenhuma ao Estatuto da Criança e do Adolescente, essa cartilha de criar marginais, nem ao desinteresse do aluno, nem ao descaso da família, que, no mais das vezes, não está minimamente interessada no real aprendizado do filho, só que ele esteja sendo bem cuidado - professores viraram babás para filhos de pais ausentes -, bem alimentado, bem guardado, enfim, na creche. Tudo é jogado para cima do professor.
Em resumo : não existe mais a profissão de professor. É uma profissão-fantasma. Feito aquelas almas penadas que ainda não sabem que seus corpos já foram sepultados e comidos há muito pelos vermes, e ficam vagando por aí, crendo-se ainda vivas. Ficam penando, arrastando suas correntes, bramindo seus gemidos e ulos lamuriosos.
Professores, hoje, são atores. Atores daquelas antigas chanchadas brasileiras, de dramalhões mexicanos. Somos atores a encenar uma antiga profissão. Encenar, só isso. Acontece que a maioria não se deu conta desse fato, acha mesmo que ainda é professor. É o ator que não consegue se desapegar da personagem, que troca de personalidade com ela, a realidade pela ficção. A loucura, é o próximo passo, o próximo estágio.
Aqueles que conseguem enxergar que são apenas atores representando um papel, que tudo é encenação e fingimento - e hoje tudo é fingimento na Educação - ainda são capazes de conduzir a situação de maneira mais leve para suas vidas, conseguem sair da escola e seguir "limpos" para os seus lares, cuidar e usufruir da família e amigos.
Os que não percebem que são meros atores, ou, pior ainda, os que não admitem que são tão somente bobos da corte a entreter o rei, têm vida curta, ou, pelo menos, curtas serão suas vidas de uma forma saudável. Suas salubridades mentais, sobremaneira. No funcionalismo público - são dados do Hospital do Servidor Público de SP - quase 70% das licenças médicas e afastamentos por depressão são concedidos a professores.
O comentário-depoimento-desabafo de S. Rodrigues, que reproduzirei abaixo, com a devida autorização da mesma, não é um caso isolado de alguém que não se encontrou em sua profissão. Pelo contrário, é um caso de alguém que se encontrou em uma profissão, que se preparou muito bem para desempenhá-la, mas, quando foi exercê-la, constatou que ela não existia mais. E longe de ser um caso isolado, é situação cada vez mais comum, cada vez mais recorrente no ambiente docente.
A seguir, o comentário de S. Rodrigues. Mais uma vez, obrigado por permitir que eu o transformasse em uma postagem.
"Olá Azarão.
Estava pesquisando sobre um "causo" acontecido aqui na minha cidade (o do padre Gentil Zacheta) e encontrei seu blog.
Vai pra mais de duas horas que estou me divertindo por aqui. Por que é quase tão raro como um fumante não gostar de café encontrar anti-lulistas nessa baderna que chamam de Brasil. (duas coisas: uma é que tenho problemas sérios com uso de porquês,então provavelmente vou escrevê-los todos fora de propósito e a outra é que acho que o PT é um monstro excretado todinho da mente daquele lá, falou anti-PT falou anti-Lula).
Retomando, por seu ateísmo irreverente: poucas coisas há tão contraditórias quanto ateus dogmáticos que querem "levar a palavra" a todos nem que seja na base da doutrinação e por isso são tão chatos. Há um outro tipo de ateu, aquele que quer ser gentil e compreensivo com o que acham ser ignorância do crente. Esse além de chato é iludido. A última e mais importante razão é que ler, na minha abalizada (por mim mesma) opinião deve ser uma coisa que dê prazer. O que me leva à explicação de por que decidi comentar esse post específico. Lá pelas tantas da vida resolvi "melhorar de vida" e fui tentar um vestibular de Geografia na Unesp daqui.Tendo em vista minha formação anterior mais que capenga, inclusive fiz supletivo da 8ª série e dos três anos do antigo colegial, foi um espanto pra mim quando passei direto. Oras, espanto maior foi perceber, naquele antro de emburrecimento marxista, comunista ou socialista, sei lá qual a terminação "ista" que agrada mais ao povo, que o motivo de passar no vestibular foram todos os anos de diversão desenfreada, lendo tudo que me agradava, apenas. O curso foi um tormento, uma tortura. Leituras obrigatórias tão chatas que me fizeram pensar que estava doente ou fora abduzida sem dar por isso e trocada por outra que parecia comigo mas não era eu. Dormir a cada vez que começava a ler era inédito na minha vida. Enfim. A única coisa exequível no meu caso era dar aulas, já que tenho um estômago muito delicado o qual não dava conta nem de fazer de conta que engolia as patranhas ideológicas necessárias para conseguir um orientador, tentar um bacharelado e os afins daí em diante, que se resumiriam a investir numa carreira de "pesquisadora" dos cnpqs da vida repetindo os chavões "istas" em longos textos destinados a provocar sonolência nos mais sãos e idiotia no resto. Bom! Ou mais exato: péssimo.Esse negócio aí que você fala, de acabar no psiquiatra, é sério. Foi o que me aconteceu. Sou uma pessoa do tipo mãos à obra. Há algo a ser feito, vamos e façamos, da maneira a mais eficiente possível. Ao mérito, as honras, à preguiça e à indolência um até nunca.
Esse jeito de ser é incompatível com as escolas atuais, com a "pedagogia dos oprimidos", com o coitadismo reinante. Pegar alunos numa sétima série que sequer sabem escrever o próprio nome corretamente, que não sabem ler e ter que promovê-los para a série seguinte; ter que ser compreensiva com meninas de onze anos berrando palavrões de estivador em sala, atirando cadeiras nos desafetos e mandando a professora fazer uso de certas partes da anatomia não muito usuais (sou um tantinho conservadora em algumas coisas).
Ser obrigada a presenciar o total desperdício de recursos, de infra-estrutura, de vidas ainda no início por que se falar algo contra essa situação insana a errada é você. A angústia foi tamanha que passei 8 meses tomando antidepressivo e outros medicamentos que me deixavam mais mole que boneco de vento, até decidir que entre o hospício e voltar a ser faxineira, preferia a sanidade. Há muito mais honestidade, salubridade e trabalho real numa casa bem organizada e limpa do que na rede de ensino. Admiro quem consegue continuar, mas pra mim não deu."

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Deus, Ó, Deus, Onde Estás Que Não Respondes?

Débora

A todo homem deveria ser dado o direito de ter uma Débora em sua vida. Direito de nascença, legítimo e intransferível, previsto em pétrea lei, assegurado em Magna Carta, com julgamento e execução sumários aos que tentassem se interpor a ele.
Anexo à certidão de nascimento, todo ser nascido macho praticante deveria receber da vida um vale-Débora. Não sem a devida recomendação de só trocá-lo quando se julgasse na posse plena de suas faculdades físicas, mentais, psíquicas, morais etc, e de consumi-la com moderação. Julgasse-se... Porque ninguém está verdadeiramente preparado para uma Débora. Usá-la com moderação, então... Não há níveis seguros para o consumo de Débora.
Luís Fernando Veríssimo, a iniciar uma de suas crônicas : "Débora. O nome já é um atestado de saúde, com suas vogais explosivas".
Eu tive minha Débora. Mais fugaz que fogo-fátuo, mas tive. Menos duradoura e tão ilusória e ofuscante quanto uma pirotecnia de réveillon, mas tive. De forma inesperada e inadvertida. Esbarramo-nos numa dessas linhas de tempo alternativas, numa dessas dimensões paralelas, numa dessas cidades esfumaçadas do "Além da Imaginação".
Trazida à realidade, era um relação escura e clandestina, cheia de esconderijos, pendências e volatilidades. Uma relação que, para se tornar mais consistente, como eu quis desde o primeiro beijo, desde aquele hiato do primeiro beijo, quando as bocas partem em direção uma da outra, mas não há a certeza do encontro, a qualquer milissegundo uma delas pode desistir, demandaria tempo e, sobretudo, paciência e serenidade.
Débora os parecia possuir de sobra, o que a mim soava como indiferença, desinteresse, e talvez fosse, mesmo. Eu não os tive. Usei com Débora meu modus operandi clássico, portei-me de forma afobada e atabalhoada. Assustei-a. Débora era ave fugidia. De rapina, mas fugidia. 
Da mesma maneira que Débora se condensou da névoa, sublimou-se na neblina.
Não vou dizer que ela tenha levado os meus planos, os meus pobres enganos, os meus vinte anos, uma vez que muito mais próximos dos trinta estavam,e nem deixado mudo o meu violão, a minha inspiração. Pelo contrário, Débora me provocou uma boa série de poemas, poesias, até  um conto, escritos, enfim.
Não são escritos idílicos ao amor não concretizado, que árcade nunca fui, que nunca fiquei mostrando as ovelhinhas na relva à Marília. São escritos emputecidos, de escárnio e  maldizer.
Um desses poemas, fiz chegar aos olhos de Débora, traiçoeiros e cor de mel, através de uma amiga em comum. Antecedia-lhe, ao poema homônimo de meu algoz, uma extensa carta, não menos elogiosa.
Relatou-me depois, meu pombo-correio, minha valorosa e saudosa amiga Fernanda, que Débora lera a carta em silêncio, e em silêncio permanecera sobre seu conteúdo, nada comentara.
O poema, que logo reproduzirei, visto hoje, parece-me tanto pueril, mas tem uma carga de indignação e fúria da qual não sou mais capaz há tempos. Para o bem e para o mal.
Só sei que antes disso, Débora ainda perguntava vez ou outra por mim; depois da carta, nunca mais. 
Sabe-se lá por quê. Vá entender as mulheres. Ainda mais as Déboras. Por que me lembrei dela hoje, depois de quase 20 anos? Sei lá, talvez porque recordar seja mesmo viver.
Débora
Depois de tão pouco tempo
A tua presença já é tão pouca.
Já há outros ouvidos para minha voz fraca e rouca
Outra línguas a percorrerem minha boca.
Você já não me causa alteração:
Nem alegria nem martírio,
Você é febre controlada
Que não provoca mais delírio.

Foi quase ontem
E tua lembrança já me é tão velha
Tua essência mal é sentida.
Há sangue novo em minhas artérias,
Há outro pus em minhas feridas.
Você é dependência que não mais satisfaz,
É vício que não mais alucina.
Você é droga já metabolizada
E eliminada
Em lágrimas, suor e urina.

MSL - O Movimento dos Sem-Lei, por Reinaldo Azevedo

Artigo publicado hoje, na Folha de São Paulo.
MSL- O Movimento dos Sem-Lei
"Na semana passada, comentei aqui uma declaração do ministro Luís Roberto Barroso, do STF. Ele entende que uma de suas funções é "empurrar a história", como Lênin. Não existe democracia sem um Poder Judiciário independente, mas essa independência tem balizas. A decisão que desrespeita ou ignora a letra da lei agride o regime democrático, ainda que sob o pretexto de aperfeiçoá-lo. Juízes também são produto da ordem legal que eventualmente transgridem. Pergunta-se a Barroso: aquele que manda às favas uma decisão judicial porque está "empurrando a história" merece aplauso ou punição? Sempre se pode argumentar que há o jeito certo e o errado de dar esse empurrãozinho, mas isso é guerrilha ideológica, não Estado de Direito. Vamos ver.
Liminar concedida dia desses por uma juíza do Mato Grosso do Sul impedia que proprietários rurais realizassem um leilão de gado, grãos e equinos. O objetivo do evento era arrecadar recursos para mobilizar produtores contra a onda de invasões de terra promovida por índios, ONGs e padres. Na liminar, depois cassada, a juíza alegava que sitiantes e fazendeiros pretendiam contratar segurança privada -essa era precisamente a acusação feita pelos invasores-, o que implicaria "substituir o Estado na solução do conflito existente entre a classe ruralista e os povos indígenas".
Quando os militantes invadem as propriedades, eles não estão tentando "substituir o Estado"? Então o coitado que tem esbulhado o seu direito deve ser proibido até de se defender? De resto, quem quer dinheiro para contratar milícias não realiza leilões à luz do dia.
Em outubro, um juiz negou liminar de reintegração de posse à reitoria da USP, invadida por delinquentes de extrema esquerda. O juiz que se negou a devolver o prédio a seus legítimos usuários escreveu, espancando o bom senso e a língua: "Outrossim, frise-se que nenhuma luta social que não cause qualquer transtorno, alteração da normalidade, não tem força de pressão e, portanto, sequer poderia se caracterizar como tal". Quando os criminosos deixaram o prédio, o saldo de destruição impressionava. "Transtorno"?
O meritíssimo pertence a uma Associação de Juízes que se denomina "Para a Democracia", algo notável porque nos faz supor que possa existir outra -no caso, "para a ditadura". Tal associação já produziu uma pérola, também na defesa de invasores. Escreveu: "Não é verdade que ninguém está acima da lei (...): estão, sim, acima da lei, todas as pessoas que vivem no cimo preponderante das normas e princípios constitucionais e que, por isso, rompendo com o estereótipo da alienação, e alimentados de esperança, insistem em colocar o seu ousio e a sua juventude a serviço da alteridade, da democracia e do império dos direitos fundamentais".
O estilo brega mal esconde a concepção totalitária de direito. Ora, se há pessoas acima da lei, cesse o que o antigo Estado de Direito canta. Tudo lhes é permitido, muito especialmente o crime.
O ano começa com o STF prestes a jogar o sistema político na clandestinidade. Quatro ministros já acolheram a Ação Direta de Inconstitucionalidade que quer proibir a doação de empresas a campanhas eleitorais. Se acontecer, as contribuições hoje ilegais assim continuarão. E boa parte das legais migrará para o crime. Esse mesmo tribunal, e não entro no mérito de cada decisão, "constitucionalizou", por exemplo, o casamento gay, o aborto de anencéfalos e a marcha da maconha. Legislou na contramão da vontade explícita do Congresso. No caso das cotas raciais, condescendeu com a agressão à Constituição promovida pelos dois outros Poderes. E sempre contra a escrita.
Se as leis não limitam as ações dos homens, quem disciplina os homens sem limites?"

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Pequeno Conto Noturno (38)

O interfone do apartamento de Rubens : três toques curtos, três toques longos e mais três toques curtos.
Fazia uns três, talvez quase quatro anos que Rubens não via Calil, três ou quatro nada saudosos anos, que se registre.
Calil passa a maior parte do tempo ou preso por não pagar pensão alimentícia, ou foragido para não ir preso.
Rubens ficara sabendo por Bruna que Calil arrumara uma mulher boa, honesta, provavelmente doida, e nela se encostara. Uma buceta que provém sustento. Rubens nunca topara com uma dessa. Nunca procurara, é verdade, mas não é algo pelo qual se procure, é questão de talento, ou de sorte. Nunca acharia uma dessa, portanto, conclui Rubens.
A tal mulher havia posto, segundo as más linguas, Calil nos eixos. Conseguira-lhe uma ocupação de meio período, reduzira-lhe a bebida, fizera com que arrumasse os cacos de dentes, acabasse o segundo grau, tirasse carteira de habilitação.
E até - e aqui mesmo os mais maledicentes tinham dúvidas - levara-o a frequentar uma igreja, dessas evangélicas que aceitam qualquer traste em seus bancos. Afinal, Cristo não faz distinção de qual seja a origem da grana que lhe cai nas furadas mãos. Ou que lhe cai das mãos, uma vez que furadas. Cai para as  mãos, fortes tenazes, de pastores e padres.
Para Rubens, contudo, a conversão religiosa de Calil era a parte mais fácil de acreditar. Nada mais plausivel, inclusive. Rubens podia facilmente visualizar Calil em meio ao rebanho de ignorantes, louvando e dando graças ao Senhor, não verdadeiramente convertido a Cristo, muito menos a ignorante, que idiota Calil nunca fora. Só safado, crápula, ordinário, mandrião; adjetivos, para Rubens, muito mais meritórios do que "religioso".
Rubens bem podia imaginar Calil a mimetizar os crentes, se fazendo passar por um deles por conveniência, por ter achado uma louca que lhe dera guarida. Feito um bicho cansado e/ou ferido, que necessita de um tempo para se remendar. Feridas cicatrizadas, asas costuradas, Calil voltaria a aprontar das suas, mais cedo ou mais tarde. 
Poderia ter sido mais tarde, pensa Rubens. E o toque no interfone se repete : ... --- ..., três curtos, três longos, três curtos. Código morse para S.O.S, que, por alguma razão, ou mais provavelmente pela falta de uma, Calil acha de uma tremenda graça, de uma inigualável espirituosidade (não confundir com espiritualidade), Calil morre de rir. E talvez tivesse até um certo charme, os toques. Não houvesse Calil por detrás deles. 
Não havia dúvidas. Calil cagara em tudo, de novo. O tempo de reclusão/incubação/restauração dele acabara de acabar. S.O.S,  pensa Rubens. Calil está de volta. E não há a quem recorrer, ou para onde fugir. Nunca houve. Calil está de volta. Protejam suas carteiras e, sobretudo, suas garrafas de bebidas.
- Rubão, cachorro velho, tempo pra caralho, hein?!?!
- Eu ainda suportaria a saudade por mais algum tempo, Calil. Mais umas duas ou três décadas.
Calil gargalha, uma gargalhada que parece um porre de quem há muito está abstêmio, gargalhada que só os solitários conseguem dar. O homem acompanhado ri, sorri, consegue ser feliz, consegue sim, mas gargalhar...
- Vou tomar isso como um abraço de boas-vindas. E ó... - Calil levanta o braço e mostra algo inédito, um fardo de latas de cerveja, e dos grandes, dos com 18 latas, exibe-o como um pescador a exibir um peixe grande.
- Se eu tivesse uma máquina fotográfica, um celular, ou qualquer outra dessas merdas, eu ia registrar este fato histórico : o dia em que Calil levou bebida para a casa de alguém.
- 'Cê ficou sabendo, né, Rubão? - Calil abre duas latas, dá uma para Rubens - Arrumei uma dona aí, me dediquei três anos e tanto a ela, e hoje à tarde a vaca me pôs pra fora de casa, pra correr.
- Assim, do nada? 
- Me pôs pra fora sem nada - Calil mal ouvindo a pergunta de Rubens -, sem porra nenhuma. Mas tenho meu orgulho de homem, bati o pé, abri a geladeira e disse pra vaca : o último fardo de cerveja eu vou levar, vou tomar com meu amigo Rubão. Era ponto de honra, cara.
Rubens e Calil entornam, acabam com as duas primeiras. Com a honra de um homem não se mexe, concorda Rubens. Mesmo que ela seja medida em fardos de cerveja, como é o caso de Calil, talvez dele próprio.
- Conheci a vaca depois da última noite que tive aqui, naquela vez que você me deu um murro no estômago e me pôs pra fora.
- Eu não pus ninguém pra fora. Acontece que, quando você acordou da porrada, uma das mais prazerosas que já dei, não tinha mais bebida, e, para você, não ter bebida de graça para parasitar é desagravo muito maior que um murro nas fuças.
- Hoje eu trouxe, não trouxe? - Calil abrindo mais duas latas.
- Eu saí daqui meio grogue, com sono, barriga doendo, vontade de cagar, e fui me arrastando por aí. Eu nem tinha visto a vaca, quando passei por ela. Só ouvi a voz : "parece que o senhor anda muito precisado de Jesus".
- Às quatro da manhã, Calil? Eu te dei um murro no estômago, não na cabeça.
- É, eu também achei que tava ouvindo coisas, tanto que só olhei pra trás quando ela repetiu que eu tava precisando de Jesus.
Mais duas latas.
- Era uma igreja pequena, Rubão, acho que ela tava num tipo de plantão, uma vigília lá deles, acho que na verdade tavam  fisgando desgraçados que passavam por ali naquelas altas da matina.
- Era boa?
- Pois é, tinha aquele cabelão de crente, aquele saião, aquela blusa abotoada até o pescoço, mas tinha uma boa cara, e dava para adivinhar uns bons peitos embaixo daqueles panos todos, e uma bunda ajeitada. Me chamou para conhecer a igreja.
- A mosca convidando a aranha pra entrar... - Rubens, finalizando outra lata.
- Me pôs sentado numa cadeira de plástico, me deu um copo de água ungida, para de rir, porra, eu tô falando sério, e foi falando o que Jesus poderia fazer por mim, falou pra caralho.
- Te pegou pra Cristo - Rubens mal conseguindo conter as risadas.
- Não vai parar mesmo de rir, né, caralho? Aí eu decidi que se Jesus pudesse me tirar por um tempo das ruas, se eu pudesse ficar de molho, sossegado, sendo bem tratado e bem alimentado e, de quebra, me aninhar numa boa buceta, quente e cabeluda, crente não raspa a buça, 'cê sabia, né, Rubão?, a resposta era sim : eu tava muito precisado de Jesus, ansiava por Jesus no meu coração.
Rubens, finalmente, consegue parar de rir. De certa forma, pensa Rubens, era bom ter Calil de volta, nem que fosse de vez em quando, era de muita utilidade para reforçar sua descrença no ser humano.
- E qualquer um que olhasse pra ela, Rubão, percebia que ela precisava muito de uma rola.
- E você virou um gigolozão?
- Nada disso, meu. Me esforcei pra caralho pra ser um companheiro decente. Virei um homem do lar.
- Pra fazer por merecer a ração e a casinha, né? Abre mais duas aí.
Os dois dão longos e sôfregos goles. Como só os que não têm ninguém por eles e nem são por ninguém conseguem dar.
- Mas, Calil, já que estava vivendo às custas da crente, podia pelo menos comprar uma cerveja melhorzinha, porra.
- Essa é importada, seu viado.
- De onde, México, Bolívia, Suriname?
- E vivendo às custas da evacangélica é a puta que te pariu! Ela saía cedo e eu não ficava só coçando o saco e tocando punheta feito você, não. Eu cuidava de tudo na casa. Faxina, lavava banheiro, lavava e passava roupa, aprendi a cozinhar, fazia feira, mercado, farmácia, até absorvente eu comprava pra ela, ia pagar as contas no banco, e à noite sempre tinha aquela pistolada garantida. Tá pensando o quê, porra? Tem noção de quanto custa uma empregada doméstica misturada com office boy e garoto de programa? Eu saí foi barato pra evacangélica.
- Tadinho... Acho que você tem que entrar na justiça do trabalho contra ela. Ou contra Jesus?
- Vá tomar no cu! Mas quer saber? Eu devia processar a vaca, mesmo. Tinha metida todo dia, Rubão, às vezes até duas. Sabe quanto isso dá em mais de três anos? E 'cê sabe que a gente nasce com um número contado de ereções, né? Uns mais, outros menos, ninguém sabe com quantas nasce, mas que é um tanto limitado, é.
Lá vinha Calil com suas teorias malucas, se lembra Rubens, ele tinha um baú cheio delas.
- E acabou, acabou, meu amigo. Não levanta mais. Nem com remédio nem com buceta nova. Devo ter gasto mais de mil com a evacangélica.
- E em que tribunal pretende processar a vaca? Na Vara de Pequenas Varas?
- Vai brincando, 'cê sabe que nesse quesito Deus me abençoou...
- Jesus!
- Vai a merda! A encrenca aqui é grande, Rubão. E quer saber? Eu cuidei melhor da vaca que você das suas biscates.
- Cuidou do seu sustento.
- Sabe qual o teu problema, Rubão?
- No momento, você e essa cerveja horrível.
- É que você não liga pra nada, cara. Nada te interessa de verdade. Tem muito padre que fez voto de pobreza que precisa de mais pra viver do que você, qualquer merda tá de bom tamanho pra você.
- Eu tô tomando a cerveja que você trouxe, não tô?
- Eu cuidei dos meus interesses da forma que eu sabia, mais fácil, e daí? Todo mundo faz isso. Você é que não tem nenhum interesse, nenhuma motivação pra ser canalha, e fica dando uma de superior.
Talvez remoa mais tarde sobre isso, pensa Rubens, talvez, e bem mais tarde.
- Abre mais duas, Calil.
- Já foi metade da cerveja, Rubens. Tem mais aí?
- E ela era boa de fodelança?
- Boa pra caralho, cara. Essas crentes seguram a buceta a vida inteira, 'cê não pode imaginar a sede com que vão ao pote quando encontram o pinto certo.
Rubens gargalha de novo, com gosto, chega a cuspir longe um tanto de cerveja.
- O pinto certo? Existe isso? E logo o seu?
- Pode rir, bichona velha, mas aposto que você nunca ouviu das suas biscates o que a evacangélica falava do meu pau.
- E o que ela dizia? - Rubens entrecortando sua fala com as risadas que não conseguia conter.
- Dizia que eu tenho um pinto abençoado!
Rubens se dobra ao meio, enverga no sofá de tanto rir, nem são mais gargalhadas, são estertores de riso, doem-lhe as costelas e o baço.
- Verdade, cara, um pinto abençoado. Ela dava graças por ele todos os dias em suas orações. Ela chupava meu pinto e ficava recitando salmos.
- Mentira, seu fudido. Para, porra! Para! Vou acabar me mijando todo com essa merda que você trouxe. Abre mais duas, vai.
- Verdade, Rubão. Chupava e recitava salmos, um monte deles, o que eu mais gostava, até decorei, era aquele : "ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam". E eu consolava mesmo, Rubão. Tá com inveja, né, seu puto? Fica aí com suas mulheres "cabeças", neuróticas, esquizofrênicas, tarjas pretas, analisadas e o escambau, mas nunca pegou uma crentinha de jeito.
- Muita inveja, Calil, muita inveja. Então, ela era da pá virada, topava tudo, fez de tudo com ela.
- Menos o girassol, Rubão, esse ela não liberava... o butãozinho, sabe?
- Sei. E os peitos? Você falou que quando viu ela pela primeira vez adivinhou uns bons peitos debaixo da blusa.
- Durinhos, Rubão. Muito pouco usados. Nunca antes mamados, tocados, sim. Mamados, chupados, amassados, mascados, não. Esporrados, então, nem em pensamento, antes do Calilzão aqui.
- Ela gostava de um tratamento hidrante nos peitos?
- Adorava. Dizia que eu ungia os seios dela.
- Pãããta que o pariu! 'Cê tá inventando essa merda toda.
- Não tô, não.
- Eram grandes?
- Médios. Podiam ser um pouco maiores. E foi aí que eu "mifu".
- Sifu? Sei... vai dizer que foi mamar em outra crente mais peituda, numa irmã com os peitos abençoados?
- Vai te fuder. A coisa é séria.
Calil abre mais duas antes de continuar.
- Coisa de um ano e pouco atrás, ela apareceu com câncer de mama.
- Ela teve câncer de mama e você que "sifu"? Quanta sensibilidade, Calil.
- Vai chupar pinto, Rubão. Tá me tomando por quem? Nada disso, cara. Fiquei do lado dela o tempo todo. Radioterapia, quimioterapia, cabelo caía, unha quebrava, estômago não aceitava nem água, ela vomitava tudo, e eu tava lá.
- E onde foi que você cagou? 
- Fui até em psicólogo com ela, Rubão. Se 'cê acha que é foda aguentar ladainha de pastor, devia ir num psicólogo qualquer dia desses. E eu tava lá, em todas as sessões. Antes e depois da retirada da mamas.
- As duas?
- Deu câncer numa, o médico recomendou tirar a outra, por precaução. E dá-lhe psicólogo. Psicólogo duas, três vezes por semana. E eu lá, firme.
- E onde foi que você cagou?
- Quando ela tava recuperada, tudo cicatrizado, nem mais sinal de tumor, chegou a hora de refazer os peitos através de cirurgia plástica. E eu lá, prestativo. Tava lá no dia que o médico perguntou o tamanho que eram os peitos delas e ela falou o manequim, 42, eu acho. O médico perguntou se ela ia querer próteses do mesmo tamanho dos originais, ou menores, ou maiores, e ela quis do mesmo tamanho.
- A minha lata já secou.
Calil abre mais duas.
- Passei uns dois dias com aquilo na cabeça, e resolvi falar, com muito tato, com muito jeito...
- Imagino.
- Perguntei se ela, já que a fatalidade tinha mesmo acontecido, não queria pôr uns peitos um pouco maiores que os antigos, uns dois manequins acima, 44, 46, quem sabe 48? Perguntei assim na maior inocência, só uma sugestão, cara.
- Foi onde você cagou.
- Aí a casa caiu, Rubão. Nunca vi ela daquele jeito. Falou que eu não tinha respeito pela dor dela, falou que eu tava possuído pelo demônio da luxúria. Vê se pode?, ela que recitava salmos com meu pau na boca e eu que tava com o capeta da putaria no corpo. Falou que eu tava querendo aproveitar a doença dela pra satisfazer meus fetiches, essa coisa que homens têm com peitões
- Não dá pra dizer que você tenha sido dos mais sensíveis.
- Ora, porra, fala sério, Rubão, o que tinha de mais o meu pedido? 
- Se você acha que nada...
- Pensa, cara. Imagina que fosse o contrário, imagina que você tivesse câncer no pau e tivesse que amputar, e que fosse possível colocar depois uma prótese, um pau novo, uma rola zero km, um caralho...
- Já entendi, Calil, já entendi.
- E imagina que sua mulher pedisse pra você colocar um pau um pouco maior do que o antigo, coisa de dois, três, quatro centímentros maior. Não que ela não gostasse do original, mas já que a desgraça tinha se dado... 'Cê ia ficar ofendido? Dizer que ela tava querendo satisfazer fetiche por rola grande em cima de seu drama?
- É... vendo por esse lado...
-Tá vendo, só? E nem ia precisar ela pedir. A gente mesmo já ia pedir pro médico uma benga gigante, não ia?
- É.
- Frescura, Rubão, frescura. A vaca ficou com frescura.
Calil abre mais duas, as últimas das que trouxe. Rubens bebe calado, praticamente em concordância com Calil. A lógica de Calil, entre homens, deles para eles, era irrefutável.
- Que porra de barulho é esse, Rubão?
- Fogos de Ano-Novo.
- Caralho!!! Hoje já é fim de ano?
- Ou começo, tanto faz, é a mesma merda de continuidade.
- Eu gosto pra caramba desses fogos, cara - E Calil sai à janela pra ver as pirotecnias.
- Não dá pra ver quase nada da tua janela, Rubão, vamos lá pra baixo, na rua, ver direito.
- Vai lá, Calil. Eu fico aqui, nunca gostei dessas merdas.
- Feliz ano novo, Rubão.... sem abraço, né?, tá bom. Vou lá e já volto.
- Vai com Jesus, Calil.
Rubens fica a ouvir os passos de Calil pelos três andares de escadas que os separam da rua, escuta Calil empurrar a porta de entrada do prédio e, em seguida, fechá-la atrás de si, porta que só pode ser aberta por quem tem a chave ou pelo interfone de algum morador. 
Rubens, para confirmar, põe a cabeça para fora da janela e vê Calil na calçada, olhando feito bobo para os fogos de artíficio. Fecha com cuidado a  janela, para não fazer barulho, vai à porta do apartamento, tranca-a no meio, em cima e em baixo, fechadura comum e fechadura com chave tetra, apaga as luzes da casa, prefere beber no escuro, em silêncio, sozinho.
Finalmente, vai à cozinha e, com um risinho filho da puta no canto esquerdo da boca, tira o fio do interfone da parede.