domingo, 31 de maio de 2015

Tá Rindo do Quê, Ô, Pagodinho?

Não gosto de citar. Gosto menos ainda, aliás, de citadores, aquelas pessoas que sempre começam suas falas com "segundo fulano, de acordo com beltrano etc". Geralmente, são os dados à inútil área das humanas, os citadores; filósofos, sociólogos, psicólogos e outros charlatões diplomados. Que se fodam Platão, Nietzsche ou Freud. Se eu tô conversando com uma pessoa, quero saber o que ela pensa e tem a dizer, nem que o meu interesse no que ela pense seja meio que fingido, simulado apenas com a intenção de comê-la, quero saber o que ela pensa, não o que pensou algum grego ou alemão, que aí é até capaz de eu broxar. Que quem é bom, pensa; quem não, diz o que o outro pensou.
Não obstante, e até porque eu prefiro ser essa metamorfose aporrinhante, vou citar : "se tens enfadonha tarefa, da qual não podes te furtar ao cumprimento, tampouco mais protelá-la em prevaricação, execute-a com muita música e cerveja".
E, então, fiquei pensando, matutando, puxando pela fraca memória qual teria sido o pensador a proferir essa máxima. Depois duns 10 ou 15 minutos, descobri. Fui eu mesmo. Estou me autocitando, que é o mesmo que bater punheta olhando para uma foto nossa 3x4. Pãããta que o pariu!!!
É que hoje é domingão e incostumeiro dia de eu lavar os banheiros do apartamento; mormente, faço isso às quartas ou quintas-feiras, mas é que essa semana foi atribulada, o filho com febre e tal, madrugadas maldormidas, e acabou sobrando para hoje - tampouco mais protelá-la em prevaricação. E acatando meus próprios ensinamentos, sempre lavo os banheiros tomando um bom latão de cerveja e escutando um musicão.
Latão a trincar no congelador, fui escolher o repertório do dia na minha caixa-de-sapatos-realejo, que é (óbvio) uma caixa de sapatos em que guardo para mais de 150 CDs (todos com álbuns baixados da net, de 8 a 10 álbuns por CD), todos em pé, enfileirados, feito cartões da sorte num realejo, e eu, periquito azarado, corro o dedo por cima deles, de olhos fechados, e pinço um. Hoje saiu o número 35 (sim, são numerados), com Alcione, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho e outros antigos do samba. Para não dar preferência a esse ou a aquele cantor, eu ponho o toca-CD no modo aleatório - shuffle ou random, para os iletrados em nossa bela última flor do Lácio - e deixo correr as faixas.
Então, estava lá eu, só de cuecão, emborcando cerveja e esfregando o privadão, quando Zeca Pagodinho foi o sorteado pelo programa do toca-CD : uma de suas músicas de maior sucesso, Não Sou Mais Disso, que conta a mudança radical da vida de um ex-malandro por conta de uma tal dona, da guinada que a vida dele, de boemia e orgia, deu depois que tomou um chá de buceta da tal. E ele narra a mudança todo alegre, festivo, felizinho da vida. Primeiro, à letra; depois, aos comentários.

Não Sou Mais Disso
(Zeca Pagodinho/Jorge Aragão)
Eu não sei se ela fez feitiço
Macumba ou coisa assim
Eu só sei que eu estou bem com ela
E a vida é melhor pra mim
Eu deixei de ser pé-de-cana
Eu deixei de ser vagabundo
Aumentei minha fé em Cristo
Sou bem quisto por todo mundo

Na hora de trabalhar
Levanto sem reclamar
E antes do galo cantar
Já vou
À noite volto pro lar
Pra tomar banho e jantar
Só tomo uma no bar
Bastou

Provei pra você que eu não sou mais disso
Não perco mais o meu compromisso
Não perco mais uma noite à-toa
Não traio e nem troco a minha patroa

Pois é. Tá rindo do quê, ô, Pagodinho? O cara deixou de encher a cara, de tomar o redentor goró, de dar aquela relaxadona, de sentir aquele torpor a formigar pelas veias (eu deixei de ser pé de cana), passou a trabalhar, a bater cartão, a ter corrida hora de almoço e parco holerite (eu deixei de ser vagabundo), virou até evangélico, o filho da puta (aumentei minha fé em Cristo) e, o pior, passou a ser benquisto por todo mundo, que é das piores cagadas de pombo que podem acertar a cabeça de um sujeito, ser aquele cara de quem todo mundo gosta. 
E ele continua : levanta de bom humor em pleno dia útil e antes do galo começar sua natural lida, ele já está a caminho da dele, dentro daquele ônibus, trem ou metrô lotado, com aquele povão tudo fedido e ainda com mau hálito da noite anterior. E o pior : só toma uma no bar, bastou.
O cara só sai para trabalhar, está em casa para a hora do jantar e não passa mais a noitada na rua, ou seja, o cara tá em prisão domiciliar! E ainda todo alegrão, renegando sua vida pregressa. Tá cuspindo no prato que comeu, ô, Pagodinho, ou melhor, tá cuspindo no copo em que bebeu. Pois a resposta à sua dúvida, caro Pagodinho - eu não sei se ela fez feitiço -, está  contida na própria. É claro que ela fez mandinga das brabas, a do café coado em calcinha, daquelas bem usadas, babentas, azedas, ou pior : levou seu nome pro pastor rezar no culto de descarrego, de desencapetamento.
Tá rindo do quê, ô, Pagodinho?
Claro que eu não posso também dizer grandes coisas, afinal, estou aqui, em pleno domingão, a esfregar chão e box de banheiro, mas pelo menos não estou a rir nem a festejar. Que um minímo de dignidade um homem tem que manter, ora porra.
Sacanagem!!! Acho que deram cerveja sem álcool pro Zeca!

Em tempo : claro que sempre existe a chance da música ser uma migué do Zeca, um livra-cara. Vai ver, ele pisou feio na bola com a patroa, tava precisando fazer uma moral, chamou o amigo Jorge Aragão em seu socorro e se saíram com essa. Aí, sim!!!

sábado, 30 de maio de 2015

Bar do Araújo Capitula Frente aos Canalhas de Cristo

Escrevi aqui, há uns três ou quatro dias, da dura luta do comerciante José Araújo para manter seu bar, desgraçadamente localizado entre duas igrejas de evangélicos da porra, aberto e em pleno funcionamento, pois há tempos que Araújo e seus clientes bebuns são fortemente assediados pelos crentes filhos das putas de ambas as igrejas.
Hoje, meu primo Leitinho e a Jota me chegam com a informação de que Araújo não aguentou o tranco, que capitulou frente às hostes desgraçadas do vingativo, escroto, sanguinolento, sádico, filho da puta deus judaico-cristão. Disseram-me que a notícia da derrota de Araújo está a correr pelo facebook, o face, para os íntimos. 
Como tenho várias faces, mas nenhum face (esse trocadilho foi pra você, Jotabê), só me resta acreditar neles. E entristecer. Enlutar. Quando perdemos a luta, só nos resta o luto. Jota mandou-me uma foto e o Leitinho postou a mesma foto no blog dele, o Bar do Araújo com o nome coberto com tinta; antes e depois.
Bastardos sifilíticos de Abraão!!!! Cancros moles de Cristo!!! Lambedores de buceta da Virgem Maria!!! Leprosos chupadores do pau de Lázaro que pregam a tolerância e praticam a tirania!!! Consideram-se donos da verdade e do mundo só porque têm o Espirito Santo atolado em vossos cus!!!
Espero que a segunda foto seja tão somente uma montagem de um crente mal-intencionado, feita para plantar falsos testemunhos, para espalhar que o Bar do Araújo fechou e diminuir ainda mais a frequencia do buteco.
Uma reportagem que li, dizia que Araújo já tinha ido se queixar às autoridades (in)competentes, que fizera uma queixa formal por assédio moral. Pra variar, o Poder Público prevarica para com o trabalhador honesto em prol do vagabundo. 
E querem ainda mais? Dos três estabelecimentos acima, só Araújo era pagador de impostos, os outros são parasita, tênias, lombrigas sociais. Pastores e padres arrecadam milhões e não pagam um só centavo de imposto, tudo o que ganham vai para deus, que é o nome que deram para os seus respectivos cus.
O pagador de impostos não teve seus direitos assegurados, tampouco seu ganha-pão. Os pagadores de promessas ganharam mais uma batalha contra o cidadão livre.
Repito : espero que não seja verdade, mas se for, descanse em paz, Araújo. Ou, melhor, funde uma igreja, para ex-ex-bebuns e ex-ex-boiolas, a Igreja Helênica do Reino de Baco e suas Bacantes. Que igreja dá muito mais dinheiro que pinga, Araújo, é um vício do qual ninguém se livra.
Valeu, Araújo!!!

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Viva o Luizão!!!

O ano de 1991 foi dos melhores para nós, que éramos alunos de graduação do curso de Química da USP - Ribeirão Preto. Os tradicionais Jogos Interquímicas, realizados desta feita no Instituto de Química da Unesp - Araraquara, foi o mais gordo e pródigo dos que participamos.
Pudera. Nossas bebedeiras e putarias tiveram dois involuntários patrocinadores. Um, o professor Cinelli, prefeito da FFCLRP à época, que nos deu uma grana à guisa de ajuda de custo para a viagem e para a participação no Interquímicas, evento universitário da mais alta relevância acadêmica, de âmbito internacional; o outro, o Luizão, pai do meu estimado e corno amigo Fernandão : o Luizão, sem saber, foi o grande mecenas dos Jogos Interquímicas de 1991.
Acontece que uma agência bancária, se não me falha a memória, do Unibanco, da qual Luizão era tradicional correntista, fechou suas portas na pequena e pacata cidade de Pitangueiras, e um talão de cheques, zero km, sem nenhuma folha usada, acabou sobrando e ficou dando sopa em alguma gaveta do Luizão. Meu amigo Fernandão não teve dúvidas nem titubeou, passou a mão no talão de cheques órfão de agência e levou pra Araraquara. E foi só cheque sem fundos do Luizão que voou por lá. Chegávamos no bar da faculdade em que ficamos alojados, mandávamos descer uma e mais outra caixa de cerveja e dá-lhe cheque sem fundos do Luizão. Era só bumerangue com borda de gilete que voava. Nem sei se cheque sem fundos é o termo tecnicamente correto, o Luizão até tinha fundos, o que não existia mais era o banco. Era cerveja pra cá e cheque do Luizão pra lá, era cerveja pra lá e a verba acadêmica do Cinelli para acolá.
Assim, às altas horas da matina, todo mundo já de caneco torto, não era incomum alguém levantar o copo e puxar um brinde : Viva o Cinelli!!! Viva o cheque do Luizão!!! E o coro aderia, eufórico, grato aos seus patronos : Viva o Cinelli!!! Viva o cheque Luizão!!!
Não sei até hoje se o Luizão deu pela falta ou soube da destinação de seu talão de cheques, mas sei que ele aprovaria seu nobre uso, chegado que sempre foi também a uma canjebrina.
E hoje fico sabendo que o Luizão, por volta das 23 h de ontem, fez a sua viagem final, foi ter com a indesejável das gentes, cumpriu com sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável.
Nas minhas quase três décadas de amizade com o Fernandão, pouco convivi com o Luizão. Aliás, o simples uso da palavra "conviver", ainda que minimizada pela anteposição do advérbio de intensidade pouco, já é um exagero. Estive e fiz pousada por várias vezes na casa do Fernandão, mas nunca troquei mais que meia dúzia palavras com o Luizão, que nunca foi homem de esquentar assento, nunca chegamos mesmo a levar aquela prosa. Ele estava sempre a passear pela cidade, a "ruar", a tomar sua cachacinha com os amigos, a jogar sua sinuca e seu truco. Quando chegava, era pra almoçar e dar aquela dormidona vespertina.
O que sei, portanto, do Luizão é o que sempre ouvi contarem dele. E o que sei é que ele era uma figura folclórica, quase que mitológica em sua cidade, e esta, palco e cenário de suas sagas, epopeias, peripécias e presepadas. Inúmeros foram os casos que ouvi contarem do Luizão. Desde o seu projeto, malfadado, da construção do primeiro carro anfíbio de passeio com tecnologia 100% nacional até, e esse é meu preferido, a sua incursão, igualmente malograda, como instrutor de autoescola da D. Maria.
Aqui, um agradecido parênteses se faz obrigatório. D. Maria é esposa do Luizão e mãe do Fernandão, e também a responsável pelas boas acolhidas e pelos confortáveis pousos que sempre tive quando ia para lá a passeio. Longe de ser uma amélia, D. Maria é da categoria das mulheres de verdade, daquelas antigas que não se fazem mais, daquelas que colocam sua família e seu lar sob as suas asas, sob a sua proteção ininterrupta. D. Maria é quem sempre segurou as pontas da casa, quem sempre deu suporte e logística, inclusive às trapalhadas do Luizão e do Fernandão. D. Maria sempre foi o esteio estrutural, moral e direi até espiritual da casa. Sim, porque, a zelar por tal pai, tal filho, D. Maria, muitas vezes, precisou recorrer a forças sobreterrenas. O que D. Maria já acendeu de velas para clarear o caminho e ajudar o Fernandão a se livrar de suas enrascadas, dava para abastecer Aparecida do Norte por toda a Semana Santa, Corpus Christi e feriado da Padroeira.
E, então, num belo dia, o Luizão resolveu que era hora de iniciar a D. Maria nos rudimentos da condução automotiva. Pegou a D. Maria, dirigiu-se com ela para fora da cidade, para a mais didática tranquilidade das estradas do campo e iniciou sua instrução. E tudo correu muito bem. Durante um tempo. Até que, sabe-se lá se ela acelerou quando tinha que ter freado, se a embreagem emperrou, se a marcha encavalou, se o volante deixou de obedecer às ordens de suas mãos, num átimo de instante, D. Maria perdeu por completo as rédeas do carro. Que partiu corcoveando pela estrada de terra batida, em desabalada rota de colisão contra uma sólida e pesada porteira de uma bucólica propriedade rural. Contam que Luizão rapidamente interviu em socorro da esposa, tentou brecar, puxar o freio de mão, retomar e domar o volante com mãos de ferro... tudo em vão. Quando viu que era caso perdido, não teve dúvidas, tentou um último recurso, botou a cabeça para fora do carro e berrou : " - Sai, porteira!!!"
E, agora, fico a saber que o Luizão foi pego à tocaia, à traição por uma pneumonia, com requintes de crueldade de uma infecção generalizada.
Fico a saber que, agora, foi o Luizão que perdeu o controle do carro, e, por descuido ou distração, dobrou em uma entrada equivocada, fez uma conversão errada nessa longa estrada da vida e pegou uma vicinal para a Morte, talvez aquele longo túnel de que todos falam, com uma forte luz branca ao final, a sinalizar, a delimitar a fronteira entre a presença e a saudade, entre o território dos vivos e o dos que a vida emancipou, uma porteira com a Morte por agente aduaneira a receber, vestida com sua mais bela roupa, os novos visitantes.
Tenho a plena certeza de que o Luizão, com o valoroso auxílio da co-pilota de sua vida inteira D. Maria, bem que tentou encontrar  um retorno para a estrada principal, seu GPS bem que tentou recalcular a rota, sei que ele tentou brecar, puxar o freio de mão, retomar e domar o norte do volante com mãos de ferro. Mas quando viu que tudo era em vão, que era caso perdido, não tenham dúvidas, Luizão botou a cabeça para fora e berrou : "- Sai, porteira!!!"
Se era a porteira do Céu ou a do Inferno, quem saberá? Seja qual delas for, o fato é que o Luizão vai dar muito trabalho por lá. Pããããta que o pariu se vai!!!
E agora, aqui, nesse início de madrugada, à sacada do meu apartamento, a terminar o meu último latão de Bavária, como faço todos os dias, ou por gosto, ou por vício, ou para garantir um sono minimamente tranquilo, ou para matutar um pouco sobre a vida sem, no entanto, pensar na morte, só um desejo me vem à cabeça, só um pensamento em homenagem ao Luizão, um solitário e modesto tributo ao seu passamento. Braço em riste, ergo o latão em direção à noite e à cidade, dou uma boa emborcada e saúdo : "- Viva o cheque do Luizão!!! Viva o Luizão!!!"  E um coro silencioso, composto por minha memória e talvez por alguns dos credores dos tais cheques, adere, respeitoso : Viva o Luizão.
Luizão, na única foto que achei dele pela internet, de 1964, quando serviu ao Exército Brasileiro, na gloriosa divisão da Cavalaria, se não me engano. De onde se vê que aquela história de que o sujeito se emenda depois que passa pelo exército é pura lorota. 
Viva o Luizão!!!

terça-feira, 26 de maio de 2015

Bar do Araújo, o Último Território de Homens Livres

José Araújo, 47 anos, residente em Palmas (TO), é microempreendedor do ramo dos desafogos e desabafos voláteis e engarrafados, é mercador dos sonhos e das frustrações envelhecidos em tonéis de carvalho, ou seja, Araújo é dono de um buteco, de original, inusitado e insuspeitado nome, o Bar do Araújo.
O comerciante de água benta que beata não bebe nem com a qual se benze nem a usa fria para aplacar o calor na bacurinha, dados os recentes acontecimentos, em encarnação não muito distante, cuspiu nos pratos da Santa Ceia, cagou ao pé da cruz de Cristo e ainda limpou o cu com o Santo Sudário.
E tudo isso são crimes pequenos, delitos menores, meras contravenções do Código Herege Penal se postos em paralelo com o rigor draconiano do castigo dos Céus que Araújo anda a receber.
Araújo, sabe-se lá porquê, incorreu na infinita ira do deus judaico-cristão, o do Velho Testamento, o que mandou pai imolar filho em Sua intenção, o que afogou a Terra em dilúvio, o que tornou em sangue as águas do Egito e ordenou a morte de seus primogênitos, o que atomizou e desintegrou Sodoma e Gomorra só porque o povo de lá quis comer o cu do anjo, e outras filhadaputices próprias de quem é Todo-Poderoso.
Contudo, o castigo do taverneiro Araújo tem se mostrado muito pior que os anteriormente citados, uma vez que lento e com requintes de crueldade.
"Que te vejas entre cristãos!", sentenciou o bom deus. E, imediatamente, surgiram, do quinto dos infernos, do rabo do capeta, duas igrejas geminadas ao Bar do Araújo, uma de cada lado.
"Que te vejas cercado de crentes!", bateu deus o martelo de seu sumário tribunal. E estuporaram duas pústulas de peste negra, cada uma a fazer parede com as paredes do Bar do Araújo.
Não bastasse tornar em má a vizinhança e desvalorizar imobiliária e comercialmente a região, os crentes do cu quente querem minar o negócio de Araújo. Não podem ver ninguém feliz, os escrotos desses crentes. Pudera, não são de dor, temor, culpa, remordimento, privação e ignorância feitos os seus prazeres, as suas fés e estúpidas religiões?
Araújo relata que os pastores e os fiéis das duas igrejas realizam novenas e sessões de descarrego e desencapetamento em frente ao seu estabelecimento, na tentativa de arrebanhar os bebuns do Bar do Araújo. Estão, os filhos das putas, de olho no dinheiro da pinga dos pés de cana, querem transformar o dinheiro da pinga em dinheiro do dízimo, querem livrar os cachaceiros de um vício para imputar-lhes outro, muito pior que o da cachaça, que, para esse, há possível, ainda que remota, reabilitação, já para a burrice em Cristo, não há intervenção que dê jeito.
Não conseguirão, é certo, a conversão dos pinguços, que quem é devoto ao copo, outro deus não procura, mas, é certo, espantarão a clientela, que bar é o retiro espiritual do bêbado, é o spa do bebum, é mesmo uma embaixada, um território livre para ele beber sossegado, livre da aporrinhação e da censura, sobretudo, conjugais. Aí, vem um bando de umas porras de uns cristãos e invadem solo autonômo e soberano. O bebum migra pra outro lugar.
E não são só as ébrias almas dos fregueses de Araújo que estão na mira dos cristãos, o maior objeto de disputa entre os dois pastores é a alma do próprio Araújo, ela é o troféu de caça a ser exposto empalhado ao fundo do púlpito da igreja que conseguir sua conversão, a alma de Araújo é a piéce de résistence cobiçada pelas duas congregações.
Sobre isso, deixemos que o próprio Araújo nos relate seu infausto : “A porra ficou séria quando os dois pastores começaram a disputar minha alma e tentar me converter, eles me seguem por toda parte, me jogam água benta, não descansam, estou ficando louco”.
Pããããta que o pariu!!!! A cena chega a ser surreal, ou melhor, transcende o surreal. Imagino o Araújo tendo que sair,  por exemplo, para ir ao banco, à padaria etc. Mal ele põe os pés na rua e é atacado pelos dois pastores, de bíblias com cheiro de suvaco e aspersores de água benta a bombardear o pobre Araújo, entoando rezas, salmos e exorcismos; o Araújo correndo e os pastores atrás.
É isso que dá garantir legalmente a liberdade plena, total e irrestrita a ignorantes. Sempre falo que a tal da democracia deve ser muito boa e coisa e tal para povo educado, que democracia funciona muito bem na Suécia, na Noruega etc. Para povo chucro e ignorante feito o brasileiro, um dos povos mais religiosos do mundo - mais um de nossos vergonhosos recordes -, o que funciona é a linha dura. Sob pena de vermos, cada vez mais, situações análogas à de Araújo. O brasileiro, desdentado de letras e dentes, considera que ter liberdade é poder fazer tudo o que lhe der na telha, inclusive, e principalmente, tirar a liberdade do outro. Vejo isso todos os dias nas escolas; tantas são as liberdades dadas, sem a contrapartida de nenhuma obrigação, ao adolescente que ele se acha no direito de impedir o trabalho do professor e o aprendizado dos alunos - cada vez mais raros - que ainda vão à escola para estudar.
O mais curioso, o mais canalha e hipócrita na verdade, é que são esses safados dos crentes que vivem a berrar (literalmente, alguém já viu crente que consiga falar baixo as merdas que falam?) por tolerância e pelo direito à liberdade de culto e crença. Como se, no Brasil, em algum momento de sua História, tivesse havido alguma espécie de perseguição a essa ou a aquela religião; como se, alguma vez, sua liberdades de culto tivessem sido impedidas ou anuladas.
Vai ver, essas pragas de Cristo pensam que ainda estão em épocas do Império Romano (bons tempos aqueles, pena a incompetência de Nero), pensam que a Bíblia é o jornal do dia, a revista Veja da semana. Nunca houve, no Brasil, lei a lhes barrar o pleno exercício de sua ignorância, como querem barrar agora o livre comércio do Bar do Araújo.
Aliás, a lei lhes faculta, aos pastores, padres e outros que tais, não apenas a liberdade de credo e culto; permite-lhes também infringir certas leis dentro da lei, os põem impunes a atos aos quais, se praticados por outros que não os "ministros" de deus, adviriam pesadas penas e restrições.
A exemplos, podem falar em nome de terceiros (deus e Cristo, no caso) sem nunca terem apresentado uma procuração dos mesmos, como diria Vínicius de Moraes, com certidão passada em cartório do céu, e assinada embaixo: Deus! e com firma reconhecida, a lhes outorgar tal incumbência; podem comercializar objetos e artefatos de supostas propriedades curativas sem ação tampouco eficácia comprovadas pela ANVISA ou por qualquer outro órgão sanitário ou de saúde : é o comércio dos ungidos, é o óleo ungido, é a toalhinha ungida, o tijolinho ungido, o martelinho ungido e até - esse é o meu preferido - o spray mata-capeta vendido por Silas Malafaia (é verdade, http://amarretadoazarao.blogspot.com.br/2011/09/spray-mata-capeta.html).
Ou seja, podem cometer, impunemente, falsidade ideológica, estelionato, charlatanismo e curandeirismo. Podem ser foras da lei protegidos pela lei de liberdade de credo e culto, os picaretas. O que mais querem os canalhas? Fechar o Bar do Araújo!!!
Aguenta a mão, Araújo! Que sua igreja a Baco, que seu santuário a Dionísio não esmoreça à pressão do genocida deus cristão. Resista, Araújo, feito um Leônidas, nessa Termópilas em que lhe encalacraram. Retruque, Araújo!
Quanto à sua alma, acho que a solução é fácil. Rápida e rasteira. Na próxima vez em que um dos pastores vier lhe assediar, abra a braguilha, saque a rola para fora e chacoalhe para ele. Duvido que volte a lhe incomodar. Pelo menos, chacoalhar a rola funciona com Testemunhas de Jeová - experiência própria.
Quanto a manter seu estabelecimento e sua clientela, arregace as mangas, Araújo. Envergue suas armas e armaduras. Lute com as armas que deus lhe deu, ou melhor, com aquelas que ele - ainda - não conseguiu lhe tirar : a sagrada pinga, a sacrossanta cachaça. Convoque, Araújo, sua guarda pessoal, seus 300 melhores bebedores, reúna seus 300 mais dedicados e disciplinados bebuns.
Combata o Fogo da Fogueira Santa com o Fogo Paulista. Promova reuniões de congraçamento entre os pés de cana, cultos de benção com goró ungido para os pudins de cachaça, sessões de exorcismo para expulsar o demônio da cirrose dos fígados que não lhe pertencem.
Faça promoções, Araújo. A segunda da cerveja, a terça da cachaça, a quarta do conhaque, a quinta da caipirinha, a sexta do traçado, o sábado da catuaba, a domingueira das batidas.
Organize eventos, quermesses, rifas, ações entre amigos, festivais etílico-gastronômicos - torresmo, salsichão em conserva, tremoço e ovo cozido colorido. Convoque os pagodeiros da região, faça forte batuque em frente às igrejas, como novenas fazem defronte ao seu bar, acenda as santas labaredas das churrasqueiras nas calçadas e inunde as igrejas com fumaça de churrasquinho de gato. Quero ver só se eles aguentam, Araújo!!!
Contra-ataque, Araújo!
Open bar, Araújo! Open Bar do Araújo!

sábado, 23 de maio de 2015

Pequeno Conto Noturno (52)

A vida passeia, faz afronta a desfilar por sob a sacada do covil de Rubens, às vistas de seu periscópio, de seu sonar de morcego.
Passa a moça com o uniforme do mercado em que trabalha como operadora de caixa, maquiada com o excesso que hoje é considerado bom gosto, erraria no troco se a máquina não o fizesse por ela, olho na bússola desnorteadora de seu celular, provavelmente a vestir um perfume doce e barato.
- Comia - sentencia Rubens.
Passam a quarentona/cinquentona e sua filha, melindrosa em seus anos 20; a primeira com cansaços a mais, a segunda, celulite e culotes a menos.
- Comia as duas - veredicta Rubens.
Passam a gorda de belas feições e de machos modos abraçada feito lagosta à magrinha de delicados e coquetes jeitos; coturno 44 e sapatinho de cristal cindelérico.
- Comia a magrinha; o tanque de guerra, eu deixava fazer um boquete - promulga Rubens.
Passa a sexagenária/septuagenária, com seu carrinho de feira, com suas compras feitas às dúzias, às pencas, às bacias, e não aos tristes e sem imaginação quilos. O photoshop de Rubens extrai-lhe décadas tiranas, injeta-lhe cavalares progestorenas e oxitocinas; que a menopausa é a abstinência e o A.A. das mulheres.
- Comia!
Passa a bichinha...
Rubens emborca o fim da cerveja e resolve ir dormir. Deixa os dois latões restantes para o amanhã, que, por sorte ou por azar, é sempre outro dia. Nada de rua hoje. Nada de madrugada desprotegida. Seria um massacre.
E já se foram os tempos de autorregenaração, de poderes de planária. Já se foram os tempos das garras, os tempos de wolverine de Rubens.
Embora, ele ainda aguarde por sua Fênix, por sua Jean Grey.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Oh, Crianças, Isso é Só o Fim ! (Ou : a Minha Curta Canção da Despedida)

O fim não é
- conforme o Poetinha -
Por cima uma laje
Embaixo a escuridão.
O fim não é a treva
O breu atoladiço :
É o branco impalpável.

E tudo acaba aqui.
Com tantas páginas ainda em branco.

O Planeta dos Macacos (Ou : o Longo Prelúdio da Minha Canção da Despedida)

O que fazer, velho amigo,
Quando nos virmos
Entre neandertais maquiados de sapientes?
Usando para o mal
Para o límbico
Não para o racional
Tecnologia de Flash Gordon
De Buck Rogers
De Kirk e Spock
De Star Wars?
Para se congregarem
Em torno de virtuais labaredas fotoelétricas
Chamas frias e tristes
Azuis, blues
Como é o sangue dos executados em câmara de gás,
Dos cianóticos?
O que fazer
Quando chimpanzés estão a bordo
E no comando de nossas portuguesas naus?
Pular fora do barco, velho amigo!
Deixar a nau à deriva,
Deixar a macacada naufragar em sua ilusão de inteligência.
E acender, velho amigo,
Esfregando dois gravetos
Atritando pedras de sílex
Uma fogueira paleolítica.
Para aquecermos o vazio da existência
(e para anestesiar a faina)
Com o qual nunca soubemos lidar.
Para tostar nossas caras
Para avermelhar nosso sangue
Para temperar nossas flechas
E nossas lanças.
Quando macacos, velho amigo,
Estão no comando
(e a servir de baterias)
Dos computadores
Só nos resta
(se você quiser me fazer companhia)
Assarmos nosso sustento 
Ao fogo elemental
Ao funeral
À cremação de ramos mortos.
Evocarmos a luz primeva
A furtada por Prometeu.
Só nos resta, velho amigo,
Deixar o futuro aos macacos
E retornarmos
E celebrarmos
O lume
A luz
O lux
O infravermelho primordial
(eu quero ser uma flor nos seus cabelos de fogo).
Involuirmos aos pelos
Dançarmos pelados
Ao som ensurdecedor
E inaudível das estrelas
Às vistas e aos holofotes dos pirilampos.
Relaxemos, velho amigo,
Deixemos os macacos dominar o mundo,
Entremos de penetras
Nos saraus das cianofíceas
E das diatomáceas da lagoa
Cujas criptógramas cápsulas
Ao contato da bronca dextra forte
Se esbroam.
Larguemos mão, velho amigo,
Larguemos mão.
Let it be
Let it be.
E por fundo musical
O profeta Raulzito,
Que sempre soube dessa merda toda.
(ah, mas que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã, celular, eu acho tudo isso um saco...)

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Amor Com Amor Se Paga

Boceta de Pandora

Broxar
Ou deixar de erigir e ejacular ideias?
Broxar!!!
Mil vezes um pau mole
(Visão triste de se ver)
Que um cérebro inapetente
(Mantido vivo por aparelhos
Ou pior : pela obrigação
Adubado por sondas
Por esculápios semianalfabetos).

Mil vezes não enovelar pentelho com pentelho
Que não mais desfibrar
A fibra que até o mês passado 
Lá no campo ainda era flor
(desculpem-me o uso mau e calhorda de vossa sensibilidade vernacular, Belchior e Fagner),
Que não pentear, alinhar
Tingir o pensamento
E urdi-lo em fila indiana
Em formação militar
Em tapetes de Bagdá;
Com sorte, voadores.

A grande desgraça
A grande desdita
É termos sempre acesso
 - Irrestrito -
À indagação
À bifurcação
E nunca
- Peremptoriamente nunca -
À escolha da resposta
A definir nossa predileção por esse ou por aquele mal :
Dos males, os males.
Toda a coleção de papiros,
De insetos empalados em alfinetes
Da boceta de Pandora.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Eutanásia

Eutanásia,
Clama o Marreta,
Outras asas
(que não rotas)
Outras rotas
Outras Índias
Outras Ásias
Outras pazes
(ou ao menos alguma)

Eutanásia,
Clama o Marreta,
Por despalavras,
Por despensamentos,
Por desaparecer.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Blues Fúnebre - W.H. Auden

O filme "Quatro Casamentos e um Funeral" é um marco da comédia romântica, protagonizado pelo cara de bocó Hugh Grant e pela belíssima Andie MacDowell. É um relato bem-humorado, ao estilo inglês, da vida e  das peripécias de um grupo de amigos ao longo de, óbvio, quatro casamentos e um funeral. No funeral, o belo Blues Fúnebre, lido pelo amante do defunto, que bicha inglesa é outra conversa, é outro nível, mas ainda é bicha.

Blues Fúnebre
(W.H.Auden)
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

Amigos (2)

Cena do filme St. Elmo's Fire; traduzido por aqui como "O primeiro ano do resto de nossas vidas"
"Meus bons amigos, onde estão?
Notícias de todos quero saber
Cada um fez sua vida de forma diferente
Às vezes me pergunto: Malditos ou inocentes?"
(Barão Vermelho)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

O Cara dos Olhos de Raios-X (parte final)

As duas amigas chegaram de novo até o balcão e estavam olhando pro cara. As duas. O cara nem se tocava disso. Pegaram suas bebidas e continuaram a olhar pro cara, lá da mesa delas. 
“Deve ser foda mesmo”, tornei à conversa. “Tenho uma coisa pra te alegrar. Tá vendo aquelas duas ali na mesa à esquerda?, estão olhando pra você, e uma delas é bem gostosa."
O cara nem se deu ao trabalho de virar a cara. 
“Gostosa? Você é quem está dizendo. Eu só vejo ossos e obturações de amálgama de mercúrio. E supondo que a gostosa é a mais alta, correto?” 
“Ééé, essa mesma.” 
“Ela tem oito restaurações, cinco na arcada superior e três na inferior. Também tem uma solda de fratura horrível no antebraço direito.” 
Calei minha boca com cerveja. Como animar um cara desses? Um cara cujo padrão de beleza se baseava em número de obturações e calos ósseos? 
“A mais baixa”, seguiu o cara bonito e melancólico, “parece-me muito mais atraente. Nenhuma obturação, a não ser que seja de resina, e ossos intactos.” 
Resolvi entrar na do cara. 
“Legal. Faz assim, então: você vai lá, chama as duas até aqui e passa uma conversa na mais baixa. Eu aproveito e vou tentando algo com a mais feia, a mais alta.” Eu nem bem conhecia e já estava tentando sacanear o cara. Mas sábado à noite é terra de ninguém, é terra sem pecado. 
“Não vai dar, não”, sentenciou o cara. E selou o NÃO mais categórico que já ouvi com mais uma talagada. 
O cara já havia entrado pro meu álbum de recortes. Tá certo que não havia aguentado os 40 minutos iniciais estipulados por mim, mas vomitou e estava lá, firme, bebendo tudo de novo. Quando vomito, eu estou acabado, a noite já era pra mim. O cara delicado tinha mais fibra que eu. 
“Por que não? Qual o problema?” 
“O problema”, seguiu numa voz ainda mais triste, “é que a mais baixa está com um bolo fecal enorme parado nos intestinos.” 
“Como é que é?”, eu meio furioso, puto da vida. 
Essa não. Eu tava lá, na maior boa vontade, ouvindo as lamúrias do cara e ele diz que não vai cantar a mais feinha porque parece que ela não cagou hoje? Por pouco não esmurrei o cara. 
“Sim, é isso mesmo. Ela tá com um bom tanto de merda no intestino, ela deve ter comido muita carne ou outro alimento rico em ferro, quando isso acontece, eu também vejo as merdas das pessoas.” 
Decidi que compreensão, benevolência e piedade tinham limites. 
“Tá certo, seu loki. Fica aí.” E deixei o cara bonito e triste para trás, no seu mundo fosforescente de esqueletos dançantes, esqueletos com bolas de merda dentro. O cara ficou lá, triste, olhando pro granito do balcão e vendo sabe-se lá o quê. Depois, até pensei que havia sido muito duro com o cara, mas aí já era tarde. E era madrugada de sábado, certo? 
Deixei o cara e resolvi tentar a sorte com as duas. 
Evoquei a técnica daquele meu amigo e ataquei a pichorra. Gastei com ela uns bons 20 minutos. Nada. 
Dei uma disfarçada, fui até o balcão, paguei mais uma cerveja e voltei pras duas. Flanqueei a mais bonita. 
Acredito que gastei muito bem os 40 segundos de atenção que ela me deu. 
Entornei o resto da cerveja e voltei pra casa. 
A minha conversa funciona muito melhor com os loucos. 
Definitivamente.

O Cara dos Olhos de Raios-X (parte 3)

“Cara, eu tava precisando dessa mijada”, o cara ainda sem admitir o vômito. 
Curioso. Quase nenhum bêbado admite o vômito. Acho que consideram uma espécie de fraqueza, uma fraqueza dentro de outra fraqueza, que é o vício. Talvez funcione assim, já que é pra ter um vício, que sejamos resistentes, firmes nesse vício. Se bem que um outro conhecido diz sempre que não existe fraqueza nenhuma em ser um bêbado. É preciso ser forte, ter talento pra ser bêbado. Só sei que o cara continuou: 
“Então, eu não preciso pôr a mão em ninguém pra saber se esse alguém está armado.” 
“Sei...”, eu perguntei. 
“Eu tenho olhos de raios-X” , disse o cara e pediu mais uma garrafa de vinho. 
Bares daquele naipe abrigam muita gente anômala, atraem a fauna mais diversa. Já bebi com uns tipos bem esdrúxulos lá no Durval. 
Como a dona que sempre ia ao banheiro quando sua cerveja chegava à metade da lata e completava. Completava com urina. Urinoterapia, ela me explicou, uma maravilha para pele, queda de cabelos, disposição física, reposição hormonal. Era uma dona passada dos trinta, não entrada nos quarenta, estava em forma muito boa e parecia que tava afim de dar pra mim. Mas com o andar da conversa fui perdendo o apetite nela. Nem sei direito o porquê. Acredito que aquilo dela tomar urina possa ter me desestimulado um pouco. 
Também o cara – semblante de chinês do Paraguai- que se dizia descendente direto de Gengis Khan. Andava com uma pele de carneiro no bolso de trás da calça, tinha uns rabiscos nessa pele, a árvore genealógica dos mongóis. Apontava um dos quadradinhos e dizia ser o de Gengis Khan, apontava outro bem abaixo e dizia ser ele próprio. Alisava os bigodes para baixo e batia com o copo na balcão, em desafio pra quem o contrariasse. 
Sem entrar em detalhes do velho com brinco de argola de ouro e tapa-olho de corsário (o de pirata era diferente, ele sempre frisava), ou o boxeador vegetariano (não posso ver sangue, justificava).
Uma dona que bebe urina, um tataraneto do Gengis Khan... Resolvi que um cara com olhos de raios-X não era nada absurdo. Estava dentro do padrão. Continuei escutando. 
“E não é o primeiro lugar que me recusam, não. Já me ofereci pra diversos outros serviços. Procurei hospitais. Podia trabalhar na emergência, podia ver logo se havia algum osso fraturado, mais rápido e sem necessidade de máquinas. O enfermeiro-chefe me perguntou ‘e a chapa do raio-X? Você solta pelo cu?’; ofereci-me pra bancos, pra ficar ao lado das portas rotatórias da entrada; ofereci-me em aeroportos pra vistoriar bagagens. Nada. Sempre respostas engraçadinhas do tipo da do enfermeiro-chefe. E aqui nesse bar, o dono nem me deixou falar”, e uma entornada inaugural na nova garrafa. 
“Considere-se com sorte do Durval não ter te escutado.” 
“Você deve estar pensando como todo mundo, que eu tô reclamando à toa, que ter olhos de raios-X é uma benção, ver mulheres peladas, certo?” 
“E não é bom?”, eu seguindo a conversa como se caras com olhos de raios-X fossem a coisa mais normal do mundo. 
“Errado.”, e outra bela talagada. “Eu não vejo ninguém pelado, nem bundinhas, nem peitinhos, nem bucetas. Nada.” 
“Mas não tem olhos de raios-X?” 
“Claro que tenho. Por que todo mundo parece idiota? Você já viu um par de peitos numa chapa de raios-X? Não, né? Só viu ossos, certo? Pois, então. É assim que vejo todo mundo. Só esqueletos dançantes”, e o vinho desceu mais dois dedos goela abaixo.
Puta que o pariu. Nunca tinha pensado por esse ângulo. A tristeza na voz do cara bonito começava a ter sentido. Nunca ter visto um peitinho... 
“Como é isso, seu olhos emitem raios-X?” 
“Não. Nem precisa se preocupar, eu não estou te irradiando, seus testículos estão seguros. Nenhum olho emite nada, nenhum tipo de comprimento de onda, olhos são receptores. Os comuns captam o espectro do visível, as sete cores do arco-íris, lembra da escola?” 
Eu não lembrava; deixei ele seguir. 
“Alguns animais, como os pernilongos e as cobras peçonhentas, captam o infravermelho, enxergam o calor dos corpos de sangue quente; outros ainda captam ultravioleta, as abelhas. Meus olhos são receptores de raios-X. Onde os raios-X atravessam, eu vejo um clarão, um fundo azul-fosforescente; e o que eles não atravessam é o que, na verdade, por contraste, eu vejo. E que basicamente se resume a ossos e estruturas metálicas.” 
“E não dá pra aprender a controlar ?, sei lá, modular essa recepção, enxergar em camadas, não sei...” 
“De novo a idéia do atravessar a roupa e parar na carne... Não, não dá. Não há modulações, os raios-X atravessam por inteiro ou não atravessam nada. Só o que vejo nas ruas são esqueletos balançantes, de pessoas e animais.” 
Que merda. Imagine só ver um esqueleto voando, ou pulando de um muro a outro. 
“E as plantas?” 
“As árvores mais antigas, de mais grossos caules, eu sou capaz de perceber, mas não suas folhas ou flores.” 
Puta que pariu. Explicada a tristeza na voz do cara bonito. O cara nunca tinha visto uma flor na vida. Se é que um sacana de um deus fez isso tudo, uma única inveja eu tenho do safado: o cara fabrica flores como ninguém. 
Continuamos bebendo os dois, uns bons minutos calados.
(continua)

quinta-feira, 14 de maio de 2015

O Cara dos Olhos de Raios-X (parte 2)

Olhei de novo e mais atentamente pro cara de voz triste e belas feições. Sua altura regulava com a minha, conseguia ser mais franzino que eu, o que não é feito dos mais fáceis, gestos delicados, sem serem femininos, mas delicados, semblante sem única cicatriz que pudesse inspirar medo, ou única ruga que pudesse inspirar respeito. E as mãos? Mãos de dedos finos e brancos, quase translúcidos, como se feitos dessas massas de modelar para crianças. Rabos de lagartixa. O cara parecia ter cinco rabos de lagartixa em cada uma das mãos. 
Como que lendo meus pensamentos e respondendo à pergunta que eu nunca lhe faria, continuou: 
“Eu seria um segurança preventivo, e não um reativo.”, e lá se foi o resto da segunda garrafa de vinho. 
“Aposto que não entendeu, né?” 
Não tinha entendido mesmo. Nem sei se queria entender. Eu só estava num bar, bebendo. A maioria das coisas vistas naquele bar não eram mesmo para ser entendidas. Mas posso dizer que não tinha a menor vontade de lhe perguntar nada. Melhor economizar palavras. O cara ia mesmo dizer tudo. 
“Eu trabalharia na prevenção, sabe?, eu verificaria cada pessoa que entra no estabelecimento, veria se não portam armas metálicas, de fogo ou brancas.” 
“Olha”, acabei falando, “o povo que vem aqui é meio estranho, mas, no geral, de índole pacífica. Nunca houve maiores problemas nesse sentido. Acho que não gostariam de ser apalpados ao entrar.” 
Além do quê, os caras que por lá aportam não iriam se sentir muito satisfeitos em ser revistados, tocados por um cara de aspecto frágil, delicado. Mas, claro, não disse isso ao cara. 
“Não. Nada disso. Eu não preciso tocar pra saber disso.” 
Agora, eu tinha ficado curioso. Estava acabando de engolir a cerveja na minha boca para perguntar o como ele faria isso, quando o cara sufocou um soluço, um engulho. Vinte oito minutos, dos quarenta da contagem regressiva para que o cara figurasse de vez no meu panteão. 
“Ó”, disse o cara numa voz ainda mais triste, “preciso ir até ao banheiro, urinar. Na volta, explico o resto.” 
E saiu a passos largos em direção à escada de acesso aos banheiros; galgou-a de três em três degraus, seus braços içando-o e impulsionando-o pelos corrimões. 
O cara tinha ido vomitar, faltaram 11 minutos para que eu lhe erguesse um altar. Mas nessas situações, 30 segundos são uma infinidade. 
Pedi mais uma cerveja, o Durval trouxe e comentou: 
“Que figura, esse viadinho aí, hein? Veio me pedir emprego de segurança. Quase falei pra ele ‘tu é segurança mesmo?’ , então segura aqui.”, e apontou pro pau, que felizmente o balcão cobria de minha visão, “segurança... segurança é a puta que o pariu. Com um peido, eu derrubo o viadinho.” 
E, em se tratando dos peidos do Durval, isso bem que podia ser verdade. E saiu para atender outros fregueses. 
Duas mulheres encostaram no balcão, pediram dois Alexanders ao Durval, que é uma bebida meio leitosa, achocolatada. Mulheres sempre andam às duplas nos lugares de caça. Dupla clássica: uma era a bonita, gostosa, desejável e desejada; a outra era a amiga feinha, rostinho até aprazível, mas meio gordinha, de óculos, umas espinhas aqui e ali. Ao longo de toda minha experiência por lugares com aquele, cheguei à conclusão de que há uma espécie de simbiose entre a gostosa e a pichorra. A pichorra sai com a amiga gostosa porque ela vai acabar sendo vista, mesmo que os olhares sejam dirigidos à gostosa; humilhante, mas, ainda assim, as chances da pichorra ser vista aumentam consideravelmente. A gostosa sai com a amiga pichorra porque, ao lado dela, sua beleza irá ainda mais se sobressair. 
É uma troca, um jogo de interesses. Dizia, uma amiga minha, sapatão, que nada é sincero ou gratuito entre mulheres. Um outro amigo, especialista em pegar pichorras, sempre expunha sua técnica: ‘você olha pras duas, a pichorra até que meio se encolhe, já se afasta, sai meio pro lado, sabe que os caras vão conversar com a amiga bonitinha. E aí, o que a gente faz? Vai e canta a pichorra, ela fica surpresa, estupefacta, ela é sempre a segunda a ser cantada, quando o cara não consegue a amiga gostosa. Essa pichorra será eternamente grata a você, fará todas as suas vontades.’ 
Eu, devo admitir, já tentei essa técnica algumas vezes. Nunca funcionou. 
Enquanto elas esperavam o Durval preparar as bebidas, eu cheguei a pensar em abordá-las, mas não consegui pensar numa abordagem. Acho que minha conversa funciona melhor com os loucos. Em nenhum momento, nenhuma das duas arriscou um olho pro meu lado. Pegaram suas bebidas e foram postar-se em uma das mesas. Levantei um silencioso e solitário brinde a todas as mulheres que não quiseram dar pra mim! 
Não brindo por pouca coisa. 
Naquilo, o cara bonito e triste chegou do banheiro. Cara macilenta, encovada, típica dos vômitos de vinho. Quem chega de uma bela mijada está com a cara aliviada, leve. Ou mesmo um vômito de cerveja, o vômito de cerveja também traz alívio, desempapuça. Os de vinho, não. Os de vinho são foda. Como se, junto ao vinho, você vomitasse seu sangue, sua força vital, seu anima. 
(continua)