quarta-feira, 29 de abril de 2015

DÓI

Eu penso, dói
Eu prisão, dói.

Eu piso, dói
Eu paro, dói.

Eu parto, dói
Eu permaneço, dói.

Eu porto, dói
Eu perto, dói.

Eu prometo, dói
Eu perjuro, dói.

Eu penedo, dói
Eu Prometeu, dói.

Eu pranteio, dói
Eu prazenteiro, dói.

Eu petrifico, dói
Eu permeio, dói.

Eu pouco, dói
Eu punhado, dói.

Eu projeto, dói
Eu perambulo, dói.

Eu projétil, dói
Eu preguiça, dói.

Eu pirata, dói
Eu paterno, dói.

Eu prefácio, dói
Eu post mortem, dói.

Desde o parto
Desde que fui posto
Tudo dói.

terça-feira, 28 de abril de 2015

O Último dos Provocadores

Antônio Abajamra era formado em jornalismo e filosofia. 
Foi diretor e ator de teatro e cinema.
Era mal-humorado. 
Pessimista. 
Não tinha nenhuma esperança na humanidade. Nem em si mesmo.
Era crítico e ensaísta.
Entrevistador que não gostava de ser entrevistado.
Um provocador, um dos únicos que a TV brasileira teve em toda a sua história. Abu, como era conhecido no meio, levava as mais inusitadas, bizarras e controversas figuras ao seu programa "Provocações", transmitido pela TV Cultura. E não tinha predileção por nenhum de seus entrevistados, tampouco lhes aliviava a barra ou lhes fazia concessões. Punha a todos em sinucas de bico, acuados, encalacracados por suas perguntas e observações contundentes e demolidoras. Abu tinha estofo e cultura para deixar qualquer um numa puta de uma saia justa. Sim, porque um provocador tem que ter estofo, senão não é um provocador, é apenas um encrenqueiro.
Um gênio, segundo os do meio.
Mas Antônio Abujamra foi muito mais que tudo isso. O ranzinza Abu foi nada mais nada menos que o meu declamador maior. Sim, Abujamra foi o declamador-mor dos poemas do Azarão.
Ao fim de cada "Provocações", depois de encerrar a entrevista e se despedir do convidado da semana, Abujamra fechava o programa com a leitura de um poema. E só tinha autores "ruins". Abujamra lia Manuel Bandeira, Álvaro de Campos, Bertolt Brecht e outros que tais. E não é que em um belo dia, minha esposa chegou para mim e perguntou se eu sabia que o Abujamra tinha lido um poema meu no encerramento de seu programa?
Claro que eu não sabia. Fui lá no site da TV Cultura e dei de cara com Abujamra interpretando o meu "Criador de Gatos", com meu nome aparecendo na forma de legendas ao canto do vídeo e tudo.
Fiquei, é claro, envaidecido, lisonjeado pra caralho. Se eu ainda tivesse algum resquício de ego, ele teria se inflado mais que peito de atriz pornô americana. Fiquei envaidecido, porém, não totalmente satisfeito com o velho Abu. Abujamra não declamou meu poema na íntegra. Cortou-lhe versos e ainda mudou seu final, justamente o final que justificava o título do poema. Não sei se ele fez isso propositalmente, por pura provocação, ou se ele recebeu o poema mal redigido por quem o enviou ao site da TV Cultura; aliás, até hoje não sei como o poema foi parar por lá.
De qualquer forma, fui lido por Abujamra. E isso não é para qualquer um. Pãããããta que o pariu, se não é !!!
Para assistirem ao vídeo do Abu a declamar Azarão, entrem no site da TV Cultura : 
https://www.youtube.com/watch?v=8LpPNjdJh58 
Para lerem o poema na íntegra, entrem aqui mesmo, no Marreta :
Antônio Abujamra faleceu na madrugada de hoje, aos 82 anos, de infarto do miocárdio. Morreu dormindo. 
Dá cá um abraço, velho Abu, que é a única coisa falsa nessa postagem.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Pequeno Conto Noturno (50)

Rubens não gosta da cidade. Menos ainda do campo. Rubens não gosta do apartamento em que mora. Menos ainda de sair dele. Rubens não gosta de onde está. Menos ainda de viajar.
Rubens ouvira, certa vez, que o amor não dura mais que 70 dias, ou 32 cópulas, o que vier primeiro. Antes, a cota de cópulas se cumpria primeiro; hoje, Rubens prefere dar tempo ao sábio tempo.
Com Lola, nenhuma das duas situações limítrofes ainda se deu. Talvez por isso, e só por isso, Rubens tenha concordado com o convite dela para um fim de semana no campo. Um sítio, uma casa de um amigo de um primo de outro amigo etc. Ao pé de uma serra, disse Lola, com muita neblina, agora que é inverno, um bom lugar para tomarmos vinho, até cairmos. Você tem cara de quem gosta de ambientes frios e nebulosos, argumentou Lola.
Rubens tem semblante e humor frios e nebulosos, mas gostar de tais lugares? De se ver rodeado de si mesmo mais que o de costume? Rubens foi convencido mais pela oferta de vinho ilimitado que pela neblina e as belezas orográficas da região. E, claro, pelos pentelhos ruivos e grossos de Lola, que lhe tomam a vulva, a virilha, alastram-se feito grama rasteira pelo períneo - a região da "costura", o famoso campinho, onde se dá o bate-bola - e chegam-lhe ao cu, ao ainda inexplorado, por Rubens, cu.
Rubens e Lola chegaram ao tal sítio em hora próxima ao almoço. Mas não almoçaram. Você tem fome de quê? Nem desfizeram as malas. Lola quis trepar logo de cara. Tirar os possíveis maus eflúvios da casa, fechada há tempos, incensá-la com o cheiro dos dois, disse Lola. E treparam.
E foram para a varanda. E entraram no vinho - um ménage à trois com Baco, mas sem viadagens. E em uns queijos que por lá havia, a curar e a mofar. E música. Chico. Oswaldo Montenegro. Rô Rô. Legião. Cartola. Ney. Engenheiros. Raul. Sérgio Sampaio. Belchior. Adoniran. Dolores Duran. Bethânia.
Rubens recitou, de cor, um poema de Bukowski, o Pássaro Azul, mais para si mesmo que para Lola e para a paisagem, mais para verificar se o seu próprio pássaro azul ainda continuava em si. E ele continuava.
Assistiram ao pôr do sol. Roxo, pelo resíduos em suspensão e pela tão prometida neblina, já incipiente. Roxo, com tons de amarelo, feito hematoma a se descorar, a ser reabsorvido pelo corpo. A noite a reabsorver a alma que cedeu ao dia. A vida, que de tudo se nutre, a reabsorver sangue podre, vampira saprófita.
Treparam de novo. Ali mesmo, na varanda. Às vistas das primeiras estrelas (a estrela d'alva no céu desponta, e a lua anda tonta de tanto esplendor) e dos vaga-lumes mais afoitos. E, para Rubens, já era conta de bom tamanho, já poderia muito bem voltar para casa. Lola, porém, estrategicamente, prometera liberar o cuzinho nessa viagem, mas só no último dia, quando estivessem de partida, o que significava mais um ou dois dias no meio do mato.
Entraram. E mais vinho. A adega do amigo do primo do outro amigo era mesmo boa e farta. E mais queijos. Lola, ainda pelada, ainda com a porra de Rubens a lhe secar nos pentelhos, levantou-se e disse que ia se enrolar em um cobertor e preparar na cozinha um caldo tonificante para os dois, uma receita de sua terra, um tacacá. Rubens não queria caldo restaurador nenhum, queria simplesmente ceder ao cansaço, ao ligeiro ardor no pau esfolado e dormir, hibernar.
Mas, pelo percebido, Lola tinha ainda planos para Rubens, e ela é quem estava no comando. E veio Lola, de peitos de fora, trazendo o tacacá em uma cuia decorada. Um sopão de aroma forte e bom, cheiro de alho, coentro, uns camarõezinhos de água doce, folhas que Lola disse serem de jambu, uma planta com propriedades anestésicas, e uma gosma a tudo recobrir e sobrenadar, uma goma extraída da mandioca. Ficaram um tempo aconchegados no sofá, corpos aquecidos pelos cobertores e pelo tacacá.
Um filme, anunciou Lola uma outra surpresa para a noite. Ninfomaníaca, de Lars von Trier. Uma dessas desculpas intelectuais para quando a mulher quer ver pornografia, um desses subterfúgios "cabeças", de arte, para a mulher não admitir que adora uma boa putaria. Rubens mais bebeu que respondeu aos comentários e às observações lascivas de Lola sobre o filme, mais cochilou que se animou à manipulação de Lola de suas bolas do saco. Era óbvio que Lola queria uma terceira trepada, ali no sofá.
Três no mesmo dia?!?!? Lola estava pensando o quê? - pensou Rubens. Que o pau dele tinha uma prótese? Que a sua próstata era uma dessas fontes luminosas de praças, a jorrar indefinidamente luz e alegria? Rubens enrolou, protelou, encheu mais vezes a taça de Lola que a sua, até que ela adormeceu. Rubens, finalmente, teria sua hora, seu tempo sozinho, a tão necessária hora de esvaziar a lixeira.
Rubens deixa Lola a ressonar no sofá, joga um pesado cobertor às costas, desarrolha uma nova garrafa de vinho e vai se sentar com ela nos degraus da varanda - sem taça, a tomará no gargalo -, de frente para a noite, para a neblina baixa a colocar a montanha em nubentes trajes, para o céu negro, sem Lua, com uma profusão de estrelas impossível de ser vislumbrada, sequer imaginada, em ambientes urbanos.
Parece a Rubens que há mesmo mais estrelas que céu e ele fica a procurar adjetivos que bem qualifiquem tal prodigalidade celeste. Repleto de estrelas? Fraquíssimo. Pleno? Piorou. Abarrotado? Ficou na mesma. Profícuo? Pedante e sem fazer jus ao que vê. Coalhado de estrelas? Já temos algo ligeiramente melhor - pensa Rubens, entornando no gargalo. Coagulado? Não. Talhado de estrelas? Ainda não é o que Rubens procura, mas se decide por ele. Talhado estava de bom tamanho. Toda a imensidão do Universo à sua frente - uma ínfima fração dela, na verdade; mas ainda assim atordoante - e ele a vasculhar as páginas de seu léxico mental à cata de palavras. Talhado estava ótimo, perder mais tempo nisso seria um desperdício.
O escuro no mato é escuro de fato, é denso, é piche e breu, não o escurinho do cinema que é a noite urbana. Rubens leva um tempo para se acostumar a ele, um tempo até se sentir confortável com a imersão abissal, com olhar à sua frente e só ver o escuro, um tempo para domar os ouvidos e acalmar os nervos, para que o menor som sem forma do ambiente - e para quem é do asfalto há milhares de ruídos desconhecidos na noite no campo - não lhe cause sobressaltos, cagaços.
E Rubens passa a se concentrar nas estrelas, tenta olhar para o mais fundo e longe que consegue. Há poucas estrelas mais próximas, se comparadas às mais longínquas. Quanto mais longe olha, mais e menores estrelas enxerga, a ponto de se tornarem nuvens de sóis e Rubens entende a exatidão inequívoca do termo nebulosa. Rubens desfoca sua visão, ou procura diferente foco para ela, como se o céu fosse uma daquelas imagens estereoscópicas para as quais se olha fixamente, com certo foco e determinada distância, e figuras tridimensionais saltam delas. E outra boa talagada no vinho.
Um porrilhão de estrelas - pensa Rubens -, cada uma com um tanto de planetas a orbitá-la. E a porra do ser humano e seu deusinho chinfrim  dizendo que não existe vida em outros planetas. Nunca olham para os céus, esses merdas? O difícil não é crer na existência de vida extraterrestre, o impossível de se crer é que não exista vida em outras esferas.
O escuro primordial, o berçário cósmico à sua frente, uma garrafa de um bom vinho ao seu lado. Às vezes, ele dá sorte, admite Rubens com seus botões. Mais um talagada e fim da garrafa. Mas o escuro ainda está lá, as estrelas ainda estão lá e Rubens ainda está ali. Levanta-se, busca outra garrafa e reassume sua posição nos degraus da varanda.
Rubens escuta, então, uns dez minutos depois de aberta a outra garrafa, ou muito bem poderia ter transcorrido toda uma era geológica, um barulho às suas costas, um trinco de porta sendo destravado. Lola. Possivelmente despertada por algum barulho feito por Rubens durante a incursão e captura da outra garrafa.
- Rubens - diz Lola -, ainda tomando vinho? Não vem deitar, não?
Rubens responde que já está terminando a garrafa e logo se juntará a ela na cama. Sem mais, Lola entra.
Puta que o pariu! - pensa Rubens. Dois universos expostos às vistas de Lola - o Cósmico e o íntimo e pessoal de Rubens - e só o que ela soube dizer foi se ele não ia se deitar? As entranhas de dois universos evisceradas à apreciação dela e a única preocupação de Lola foi se Rubens ainda estava a se embriagar?
Se Lola, pensa Rubens iniciando a nova garrafa, ao invés da quase bronca que lhe dera, tivesse se sentado ao seu lado nos degraus da escada, tomado junto com ele aquela e mais outra garrafa de vinho, ajudado-o em sua procura por adjetivos e em seus devaneios cosmoexistenciais, talvez o tivesse ganho e conquistado por completo - Rubens anda mesmo com pensamentos de aposentadoria.
Se Lola tivesse embarcado com ele em sua Jornada nas Estrelas, audaciosamente indo onde nenhuma outra amante de Rubens jamais esteve, provavelmente o teria ganho em definitivo. Mas Lola nem viu as estrelas, só soube perguntar se ele ainda estava entornando e se não ia se deitar.
Rubens contempla as estrelas por mais um tanto, acaba devagar com a garrafa e se decide por ir dormir. Dois universos se desvinculam. O universo particular de Rubens se despede do das estrelas. Rubens entra e se deita ao lado de Lola, encaixa-se a ela. O universo das estrelas fica lá fora, acordado e imutável, como se Rubens nunca houvesse pensado sobre ele; o universo de Rubens, idem, como se Lola nunca houvesse pisado por seus planetas desabitados.

sábado, 25 de abril de 2015

Paraíso das Hienas

Meu pai possuía uma fita cassete, da marca TDK, com a gravação de um show do genial Juca Chaves. Tempos depois, essa fita ficou em meu poder e, em seguida, acabou por passar para as mãos de meu irmão mais novo. Hoje, nem sei se ela ainda existe ou se está em condições de ser reproduzida, o que pouco importa, pois tantas foram as vezes que eu a ouvi que há um registro fonográfico dela em minha cabeça.
Das situações cômicas narradas na fita pelo Juquinha, uma das que mais gosto é a da excursão dos escoteiros pelo Jardim Zoológico, devidamente acompanhados por um guia. De cara, Juca Chaves destila seu refinado veneno e nos dá a melhor definição de escoteiros que escutei na vida : "escoteiros, vocês sabem, são aquele bando de meninos fantasiados de idiotas comandados por um idiota fantasiado de menino". E segue com a história : uns escoteiros passeavam pelo zoo e o guia seguia a lhes apresentar os animais em exposição, o elefante, a girafa, o camelo... até que chegaram ao recinto das hienas. Aqui temos um animal dos mais curiosos da natureza, começou a explanar o guia, a hiena. A hiena é um animal que se alimenta dos restos de outros animais, acasala apenas uma vez por ano e também é um animal que ri muito. Nisso, um escoteirinho mais sagaz, em toda turma sempre tem um capeta (ainda bem), pergunta ao guia : a hiena come merda e trepa só uma vez por ano, ela ri do quê?
Do que riem as hienas? É uma das questões filosóficas mais indissolúveis da História. Tivesse sido esse o enigma proposto pela Esfinge a Édipo, sob a ameaça do "decifra-me ou devoro-te", o mitológico ser alado com corpo de mulher e leão teria feito uma lauta refeição, e Édipo não teria comido a própria mãe.
Lembro-me frequentemente desta história da fita do Juca Chaves em meu local de trabalho, mas hoje, mais especificamente, ela aflorou em minha decadente memória quando li a publicação dos resultados do terceiro relatório "World Happiness Report", divulgados na quinta-feira (23/04), pela Sustainable Development Solutions Network (SDSN), entidade que se propõe a "medir" a felicidade dos povos e divulgar a lista dos mais felizes. Medir a felicidade? Tem gente muito desocupada no mundo, e ganhando uma grana fácil nessas porras de pesquisas. O Informe Mundial sobre a Felicidade 2015 pretende quantificar e explicar o bem-estar em 158 países com o objetivo de influenciar as políticas governamentais em todo o planeta.
Os dez primeiros da lista são os felizes com razão, os felizes por justa causa : Suíça, Islândia, Dinamarca, Noruega, Canadá, Finlândia, Holanda, Suécia, Nova Zelândia e Austrália. Ou seja, são povos que trabalharam duro para alcançar as excelentes condições de vida que hoje possuem, estudaram, disciplinaram-se, aperfeiçoaram-se, transformaram-se em gente, enfim.
Abaixo da décima posição - o relatório indica apenas os 25 países mais felizes do planeta - aparecem algumas hienas, alguns países que, a exemplo do selvagem e carniceiro animal, devem ser seriamente estudados e investigados, para que se determine do que tanto riem : Costa Rica (12ª posição), México (14ª posição), Brasil (16ª posição), os três à frente do Reino Unido, França e Alemanha. Em 23º lugar, aparece ainda a Venezuela, país que vive sob uma ditadura e com sérios problemas de escassez, até papel higiênico falta por lá de vez em quando, mas também para que papel higiênico se a maioria da população nem come?
Antes de perguntar do que o brasileiro tanto ri, perguntei-me quais são os critérios utilizados nessa utílissima pesquisa para quantificar o nível de felicidade desse ou daquele povo. São seis as variáveis : PIB per capita, expectativa de vida saudável, alguma pessoa com quem contar, percepção de liberdade, corrupção e generosidade das pessoas. 
O PIB brasileiro é um dos maiores do mundo, o país ocupa a sétima posição na economia mundial; porém, o salário minímo é de 788 reais, menos de 300 dólares. O país é rico, mas o povão é miserável. Será, então, mais um clássico caso de "gozar com o pau do outro"? Eu tô na merda, mas meu país é campeão, então, sou feliz pra caralho. 
A expectativa de vida do brasileiro está em 72 anos, mas saudável? Passem por um hospital público, vejam e depois me contem.
No caso do quesito da percepção de liberdade, o enrosco está justamente na palavra percepção, o brasileiro confunde liberdade com bagunça, com anarquia, com falta de respeito ao espaço do outro. O cara acha que porque ele pode, por exemplo, botar música alta de madrugada e atrapalhar o sono do vizinho, ele tem liberdade, porque ele pode, impunemente, xingar, desacatar e até agredir fisicamente um professor ou diretor de escola, ele tem liberdade. O brasileiro não tem liberdade, apenas é dado a ele, por leis mal-intencionadas, o direito à bagunça; e a indisciplina institucionalizada, tornada em caráter e cultura nacionais, é a maior prisão a que um povo pode ser submetido, a pior das ditaduras. 
Corrupção? Só esse critério já bastaria para nos colocar nas últimas posições do ranking dos felizes, ou nas primeiras do dos infelizes. Mas pelo visto o brasileiro não se considera um povo corrupto, nem que suas vidas sejam afetadas negativamente pela corrupção de seus governantes. Acho que essa pesquisa só pode ter sido feita entre afiliados e militantes do PT. Ou pior : o brasileiro sabe da corrupção em seu país, sabe que todas as leis, todos os sistemas e órgãos públicos são corruptos e induzem à corrupção de seus usuários, porém, ele, o brasileiro, acha que ser corrupto é ser esperto, que ser honesto é ser idiota, afinal, não é a Lei de Gérson, o levar vantagem em tudo, a nossa lei maior, a nossa Magna Carta? O brasileiro sabe da corrupção que o rodeia, mas não a classifica como  um critério de infelicidade; pelo contrário, só está esperando a sua vez para também se beneficiar de algo indevidamente, só está a aguardar uma boa teta para mamar.
Talvez o segredo de nossa felicidade esteja, enfim, na última váriavel, que seu alto índice tenha gerado uma média que nos colocou em 16º do mundo do coro dos contentes : a folclórica generosidade do brasileiro. Somos um povo amável, hospitaleiro, acolhedor, cordial por natureza, certo? Porra nenhuma. O Brasil é o campeão mundial, é o primeiríssimo lugar do planeta em número absoluto de mortes por homícidio; a Índia, com uma população de um bilhão de habitantes a mais que a nossa, é o segunda colocada nessa modalidade, com um número de homícidios que não chega à metade do nosso.
Agora, sim, pergunto : do que as hienas riem tanto? Do que o brasileiro ri tanto?
Siimples. Se a hiena come merda e passa a vida a rir, não há mistérios : ela gosta de merda. Querem fazer uma hiena rir? Deem-lhe merda. O que é de gosto, regalo da vida. E pronto. Do que o brasileiro ri tanto? Ora, ele também gosta de comer merda. Tente oferecer ao brasileiro um prato mais requintado, tente oferecer ao brasileiro uma sociedade mais ordeira e regrada, com a condição sine qua non de que ele próprio também seja mais ordeiro e regrado, tente oferecer ao brasileiro uma escola de melhor qualidade, com a condição sine qua non de que ele também seja um aluno mais aplicado e disciplinado. Ele, o brasileiro, tenham certeza, virará imediatamente as costas a tal banquete. Abrirá sua marmitinha, o seu tupperware, e fartar-se-á, lambuzar-se-á de merda. E morrerá assim, todo cagado, mas felizinho, felizinho.

Em tempo : o título da postagem, "Paraíso das hienas", não é meu, é o nome de uma música de composição de Accioly Neto e interpretada por Jessé, uma das mais belas vozes surgidas na MPB. Abaixo, a letra da canção.
Paraíso das Hienas
(Accioly Neto)
Abençoai as hienas
Principalmente as morenas
Tricampeãs mundiais
Pois desse lado do muro
O jogo é tão duro, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)

Oração não voga quando não há vaga
Coração não roga quando só há raiva
E a roupa do corpo três vezes ao dia
Novena não paga ao homem da venda
Não adianta nada, não enche barriga
Subir de joelhos as escadarias

Abençoai as hienas
Principalmente as "da Silva"
Campeãs de carnavais
Pois desse lado do beco
O olhar é tão seco, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)

Oração não voga quando não há vaga
Coração não roga quando só há raiva
E a roupa do corpo três vezes ao dia
Novena não paga ao homem da venda
Não adianta nada, não enche barriga
Subir de joelhos as escadarias

Abençoai as hienas
Principalmente as morenas
Tricampeãs mundiais
Pois desse lado do muro
O jogo é tão duro, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)

Que só ter piedade de nós não vale a pena...

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Não Leio, Não Quero Ler e Tenho Raiva de Quem Lê

Pãããããta que o pariu!!! Esse é o verdadeiro sertanejo universitário. 
Que, hoje, universitário não lê, não carrega livros. Universitário, hoje, não é leitor, nem ao menos ledor, é conectado, é interativo. Volta e meia, tenho uns estagiários, da USP e etc e tal, que não carregam nem livro nem caneta, carregam apenas suas traquitanas eletrônicas, suas caras de faquires indianos há 6 meses sem comer, cara de transe, de olhos esbugalhados que nada veem.
Pelo menos, Nem Ly e Nemlerey são honestos : nem li e nem lerei. E nem precisavam dizer : pra bom entendedor, meia palavra basta, um risco quer dizer Francisco. Basta olhar para as caras idiotizadas, para as caras de quem está a olhar fixamente para a tela de um celular, de um tablet ou coisa que não os valha, para saber que esses caras nunca leram porra nenhuma, nem legenda de filme pornô.
Devo admitir : honestidade e criatividade, nota 10. E a música dos caras, será boa?
Não escuto, não quero escutar e tenho raiva de quem escuta!

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A Marreta do Ed Motta

O brasileiro é desaculturado, ignorante, semianalfabeto de pai, mãe e demais ramos da árvore genealógica. E o pior : gosta de sê-lo, tem orgulho de ser chucro. Se as chances dadas ao brasileiro de minimamente se instruir são menores ou maiores que as dadas em outros países mais ou menos desenvolvidos, é outra história, é uma outra questão (só para pensarem um pouco no caso, o último ranking da Educação divulgado pela Unesco traz o Brasil em penúltimo lugar da América do Sul; "ganhamos" só do Suriname). Mas que as oportunidades lhes são proporcionadas, isso são. E ele as rejeita com todas as suas anêmicas forças, rechaça-as com todo seu orgulho amarelo de Jeca Tatu.
Repito : o brasileiro tem orgulho de ser burro, de dizer que ler é chato (lembram de quando o Lula disse isso, e ele não é a nossa mais popular e representativa liderança, saída inegavelmente do povão?), brasileiro acha bonito falar errado, acha uma maravilha dizer "é nóis na fita", de pedir dois "pãozinho" na padaria, de pedir "trezentas" gramas de "mortandela". Eu mesmo já fui "corrigido" algumas vezes pelo rapaz do balcão de frios de um mercado próximo à minha casa; não foram poucas as vezes em que ele, após eu ter pedido lá uns duzentos gramas de muçarela, veio em meu socorro gramatical : duzentas gramas, né? Duzentos, eu reforçava. Resignado, afinal, o freguês sempre tem razão, ele pesava a muçarela e me entregava. Agora, já faz tempo que não me corrige, acho que desistiu de mim, mas tenho certeza de que sempre que me atende, pensa em seu íntimo : ece num tem geito, a burrisse é muinto grande.
Vai disso tudo que, no Brasil, o sujeito com um mínimo de estofo, com um pingo de ilustração e refinamento é visto e taxado de chato, arrogante, prepotente, soberbo. No Brasil, exibir qualquer laivo de conhecimento é considerado desrespeito, insolência. O "herege" é condenado sumariamente pela opinião pública à Santa Fogueira da Inquisição dos Idiotas.
Que o diga o cantor e compositor Ed Motta, vitimado mais uma vez pelo ódio dos idiotas, envolvido em uma polêmica das mais rídiculas, própria mesmo de um povo que não tem o que fazer, em decorrência de uma simples declaração, de um aviso dado aos possíveis espectadores de sua mais nova turnê pela Europa. Ed Motta quis prestar um favor duplo - a si mesmo e ao público - e emitiu um aviso sobre o conteúdo do show, para que desavisados não comprassem gato por lebre. Um aviso, e esse foi o grande "pecado" de Ed Motta, repleto de verdades sobre o show e, sobretudo, sobre o brasileiro, seu caráter e comportamento.
Mas antes vejamos, Ed Motta é mesmo chato em seu virtuosismo jazzístico, ininteligível em seus malabarismos e improvisos vocais? Eu até acho. E confesso que o sobrinho de Tim Maia não figura entre meus preferidos, mas tenho plena consciência de que, no mais das vezes, o que nos parece chato e ininteligível nada mais é que algo mostrado em linguagem que nos é estranha, cujos códigos não dominamos.
Machado de Assis foi/é genial, correto? Nosso escritor-mor. Pois dê um livro de Machado a um desses adolescentes informatizados de hoje, a um desses idiotas conectados as 24 h do dia a aparelho eletrônicos, com fios ligados até no cu, protótipos de ciborgues acéfalos. Ele achará Machado de uma chatice só, não passará do primeiro capítulo. A linguagem lhe é estranha.
Não estou a dizer que Ed Motta é o Machado de Assis da MPB, nada disso, mas o cara, convenhamos, não é nenhum picareta ao estilo Paulo Coelho, Ed Motta entende do riscado. Será que se eu fosse minimamente letrado em música, suas composições não me seriam muito mais agradáveis? Com certeza, sim. Sou analfabeto em música, digo isso sem nenhum orgulho, com grande pesar, na verdade, mas meus ouvidos são incapazes de diferenciar uma nota si de uma dó. O tio de Ed Motta, Tim Maia, possuía o lendário ouvido absoluto, não sei Ed Motta também o tem, mas se não, deve estar bem perto de tal. Já eu, tenho o ouvido Zero Absoluto.
Noutra feita, Ed Motta foi malhado feito Judas porque disse que não sentiria a menor falta do Brasil : "Não tenho nenhuma identificação com o Brasil. Não gosto de futebol, não como feijoada, não tomo cerveja nacional. E odeio Copa do Mundo." Porra, eu também não tenho nenhuma das preferências pelas quais o brasileiro gosta de se reconhecer e, pior, de ser reconhecido. Qual o problema de dizer isso? Dizer que não gosta de Copa do Mundo é ser prepotente e arrogante? Reparem que ele nem diz que futebol e Copa do Mundo sejam ruins, que sejam esporte e evento para idiotas, eu estou a dizer, mas ele não disse, só disse que não gosta. O problema não está em Ed Motta, o problema está é na cabeça desocupada do cara que esporra no sofá quando o Neymar faz um gol e se sente ofendido quando alguém diz que não partilha de mesma tara. Ed Motta não toma cerveja nacional, prefere as holandesas e as pode comprar. Sorte dele. Quereria eu. Acontece que uma garrafa de uma boa holandesa tem o valor de um mês da minha bavarinha de todos os dias. Só por isso, vou ficar puto com o cara? Só porque o brasileiro acha que cerveja boa é a Skol, não tem requinte tampouco grana para apreciar uma autêntica De Molen Stout & Hop, Ed Motta teria que dizer que a cerveja nacional é a melhor do mundo, como o brasileiro ainda pensa que o é no futebol? Só para poupar o vazio orgulho tupiniquim?
Ainda em outra ocasião, Ed Motta desancou a tão propalada beleza brasileira : "Estou em Curitiba, lugar civilizado, graças a Deus. O Sul do Brasil, como é bom, tem dignidade isso aqui. Frutas vermelhas, clima frio, gente bonita. Sim porque ooo povo feio o brasileiro, (risos). Em avião, dá vontade chorar (risos). Mas chega no Sul ou SP gente bonita compondo o ambiance (risos)."
De novo, o pecado de Ed Motta foi apenas relatar a realidade. O próprio Ed Motta é um mal-acabado, assim como esse que vos fala, mas só porque também somos feios, devemos dizer que o povão é bonito, ou, pior, não devemos reconhecer e elogiar a verdadeira beleza? Moro em uma cidade de 600 mil habitantes e sempre que tenho que ir ao calçadão do velho centro me deparo com um verdadeiro circo de horrores, do qual, às vistas de muitos, posso também muito bem fazer parte. Só porque eu mal sei desenhar aquela casinha com chaminé que a tia do primário ensinou, não posso dizer que bonito é um Di Cavalcanti ou um Portinari? De novo, não estou a afirmar que Ed Motta seja o Portinari da MPB, nada disso, mas o cara, convenhamos, não é nenhum embusteiro a la Romero Brito. Afetação e pedantismo de Ed Motta, ele ter uma preferência estética que não corresponde aos 90% da população nacional?
E, enfim, o atual embróglio em que meteram Ed Motta, a ponto dele ter que viajar de carro para os seus shows ao invés de avião, para evitar contato com o povo e não ser hostilizado pessoalmente como o foi nas redes sociais. Eis a polêmica declaração de Ed Motta. Desafio você a achar uma inverdade em suas linhas.

"Conforme venho avisando aqui nos últimos três anos, eu agradeço e fico honrado em ser prestigiado pela comunidade brasileira, mas é importante frisar, não tem músicas em português no repertório, eu não falo em português no show. Preciso me comunicar de forma que todos compreendam, o inglês é a língua universal, então pelo amor de Deus, não venha com um grupo de 'brasuca' berrando 'Manuel' porque não tem, e muito menos gritar 'fala português Ed'. O mundo inteiro fala inglês, não é possível que o imigrante brasileiro não saiba um básico de inglês. A divulgação da gravadora, dos promotores é maciça no mundo Europeu, e não na comunidade brasileira. Verdade seja dita, que meu público brasileiro de verdade na Europa, é um pessoal mais culto, informado, essas pessoas nunca gritaram nada, o negócio é que vai uma turma mais simplória que nunca me acompanhou no Brasil, público de sertanejo, axé, pagode, que vem beber cerveja barata com camiseta apertada tipo jogador de futebol, com aquele relógio branco, e começa gritar nome de time. Não gaste seu dinheiro, e nem a paciência alheia atrapalhando um trabalho que é realizado com seriedade cirúrgica, esse não é um show para matar a saudade do Brasil, esse é um show internacional. Que desagradável ter que toda vez dar explicações, e ter que escrever esse texto infame".

Certíssimo, Ed Motta. Brasileiro é assim mesmo. Sempre que se reúne, seja aqui ou em qualquer outro lugar, é para armar a tenda do circo, é para fazer bagunça, zueira. Brasileiro não vai a um show para ouvir e apreciar, vai para "agitar com a galera".
Ed Motta foi achincalhado nas nefandas redes sociais e respondeu a cada ofensa. Essa aí abaixo, eu achei genial. 

A internauta provoca : "Ed, vai embora. Escolhe um país bacana da Europa e vai morar lá. Aguardo informações sobre o preconceito que você vai sofrer... Mas ah, isso vai servir pra você ser um pouco mais humilde".
Ed Motta retruca magistralmente : "sempre sofri preconceito em vários lugares do mundo, na Alemanha então o pau come. Eu vou lá, faço o que tenho que fazer e acabou. Quando morei nos USA sofria direto, mas não sou coitadinho nem vitimista, e o mais importante, não estou procurando novos amigos, não tenho essas carências que o povo latino tem no mil. Quem gosta de ler, ver filmes, tocar, compor, estudar, não está preocupado com isso, o foco é outro".

O brasileiro é assim mesmo, diz que todas as constatações feitas por outrem de suas deficiências são preconceitos, prefere se fazer de coitadinho ao invés de estudar, de trabalhar duro para se aprimorar. Achei o máximo ele dizer que não está procurando por novos amigos, não está a fazer música para ser adorado, para resolver suas carências. Quem se garante, como é o caso de Ed Motta, não está nem aí para a opinião alheia. Mas para se garantir, o cara tem que ter cultura, estofo, refinamento. Tem que trabalhar duro, o que per si já é ofensa à maioria dos brasileiros. 
Camiseta de jogador de futebol, relógio branco e a gritar o nome de time? Só isso? Ou Ed Motta tem mais sorte do que julga ter, ou se esqueceu de dizer do boné de aba reta virado ao contrário na cabeça, dos correntões ostentações, das bermudas a cair pela bunda e a mostrar o rego e, o pior, do povão se aglomerando em torno do artista para tirar uma selfie com ele. Fico a imaginar a cara de desgosto, de desalento de Ed Motta, fazendo um show em Frankfurt ou em Oslo e os brasucas, vestidos como se estivessem em uma festa de peão, pedindo que ele tire selfies com eles, abraçados, rindo, todos de pescoços tortos para caberem na foto. E com pau de selfie. Pããããta que o pariu!!!
Ed Motta, o Marreta do Azarão é solidário às suas angústias, dá-lhe o maior apoio.

sábado, 18 de abril de 2015

Satélite Fujão (II)

Seus peitos
Túrgidos
Tonéis
De tonificante absinto
Que nunca desarrolhei, ordenhei
Em cujo colostro nunca me esverdeei.

E o beijo, sua boca?
Servi-me mesmo dela
E também lhe fui vassalo
Naquele dia ancestral do Big Bang?
Ao crepúsculo de uma Pangeia de hímen recém-descabaçado
À beira de uma Atlântida semissubmersa
A tomarmos vinho de algas azuis
Roubado da adega particular de Posseidon?
(ou da de Aquaman?, cada tempo tem os deuses que merece)
Ou foi só distorção da neblina
Artimanhas da bruma
Miragens de Avalon?

E a Lua?
Nos isolava e protegia do mundo
Ou nos eclipsava de nós mesmos?
Nos punha a sonhar em diferentes fases e marés?

A saudade :
A única coisa real nisso tudo.

Que Fossa, Hein, Meu Chapa, Que Fossa... (30)

Amores mal resolvidos, mal-acabados, natimortos, são a maior fossa, meu chapa.
Sentimento ilhado, morto e amordaçado, volta a incomodar. E pãããããta que o pariu, como volta!!!

Revelação
(Raimundo Fagner)
Um dia vestido
De saudade viva
Faz ressuscitar
Casas mal vividas
Camas repartidas
Faz se revelar

Quando a gente tenta
De toda maneira
Dele se guardar
Sentimento ilhado
Morto, amordaçado
Volta a incomodar

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Pequeno Conto Noturno (49)

Cerca de uma hora após o telefonema de Virna, Rubens chega à velha loja de conveniência 24 h e a vê já sentada, a esperar no deque contíguo, de costas para a loja, com um capuccino e tabletes de chocolate a lhe servir por companhia. Rubens não vai direto até Virna, entra na loja, pega uma lata da cerveja mais barata e gelada que consegue encontrar.
- Demorou... - diz Virna.
- Você me conhece, venho a pé, devagar, um contemplador da noite, do universo.
- Sei... ainda sem carro?
- Sem carro nem carteira de habilitação.
- Sem lenço nem documento...
- Aí estão duas coisas que nunca carreguei.
- Estranhou eu ter te ligado agora, depois de quatro ou cinco anos? - pergunta Virna
- Acho estranho você não me ligar sempre, o antinatural, para mim, é não nos falarmos. E são quase 6 anos, na verdade.
- Achei que talvez você não viesse.
- E alguma vez não acorri a um chamado seu, alguma vez não respondi ao seu bat-sinal lançado aos céus?
- Bom, teve aquela vez naquele bar de rock, o Arquivo X, lembra dele?, uma certa pessoa disse que chegaria de madrugada e depois saiu-se com uma história de que não acordara com o despertador, teve também aquela ocasião naquele sarau, ainda...
- Tá bom, tá bom. Você sabe mesmo como estragar uma boa frase de efeito.
- Uma boa frase? Boa? Clichezão de conquistador barato, meu caro. Acho que sua noção de qualidade foi seriamente afetada nesse tempo todo sem me ver.
- Longe do seu domínio, eu vou de mal a pior?
Riem. Virna acaba seu cappucino e Rubens, sua primeira lata.
- Deve ser culpa dessas vagabundas, dessas desclassificadas com quem você se relaciona.
Rubens vai à loja. Mais um capuccino para Virna, e duas cervejas para si.
- Te liguei - começa Virna - porque fiquei sabendo que está sozinho, livrou-se de mais uma de suas biscates.
- Isso foi há dois dias. As notícias continuam correndo rápido na província.
Silêncio. Virna leva um pequeno quadrado de chocolate à boca, sorve um pequeno gole de café, aspira seus vapores. Rubens dá uma sonora talagada em sua cerveja, reduz a lata pela metade.
- Mas você - Rubens limpando a espuma do lábio superior -, até a última notícia que tenho em mãos, continua casada, certo?
- Hoje ele tá viajando... e pensei que ele não se oporia em eu tomar um café com um velho amigo.
- Ligou pra ele perguntando? Ligou, não, né, que hoje ninguém mais liga pra ninguém, enviam mensagens, whatsapp, mandou um whatsapp pra ele?
- Vou mandar um whatsapp é pro seu cu!!!
- Melhor que um "torpedo"...
Riem, de novo. Rubens acaba com a lata. Põe a mão em cima da de Virna.
- É sempre assim, né, Virna?
- É...
- Houve vezes em que você estava livre...
- ... e você não podia, Rubens.
- Outras em que eu estava livre...
- ... e que eu não podia, como agora.
- Houve até ocasiões em que nós dois não podíamos.
- Mas nunca uma vez em que nós dois estivéssemos desismpedidos, não é?
- Nunca, Virna, nunca.
- E ainda assim...
- E ainda assim, a primeira coisa que lhe disse ao telefone, quando reconheci imediatamente sua voz, foi, eu te amo, Virna.
- E como tanta certeza?
Virna acaba com o café e Rubens, com a outra lata de cerveja.
- Como tanta certeza, Rubens? Nunca houve nada entre nós na verdade. Nunca tivemos nada. E não me venha com outro clichê como explicação.
- Bom, se quer ineditismo, vou precisar de mais um tempo. E de mais umas latas.
- Filho da puta.
Rubens sai e volta. Mais um café, mais duas latas de cerveja.
- Me diz, como tanta certeza, Rubens?
- Se nunca tivemos nada, né?
- É.
- É que eu nunca não tive com alguém o que eu nunca não tive com você.
Agora é Virna quem leva sua mão à de Rubens.
- Rubens...
- Fala.
- Traz uma cerveja pra mim?
- A de sempre?
- A de sempre.
O de sempre, pensam os dois.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Distrações

Só espero que o DNA
- Rodin e carpinteiro desse Universo -
Tenha enclausurado
Encapsulado
Mineralizado minha etérea-etílica, volátil
Inumana, anunnakiana essência
Em mármore dos bons,
Dos michelânicos.

Só espero que meu corpo
Resista
Ainda por uma boa década e meia
Ou duas
Às intempéries, às erosões
Às maresias
Das distrações e dos vícios
De que minha alma tanto precisa.

Porque - puta que o pariu! -
Como ela precisa.

Mimetismos (16)

Embora certas espécies de polvos, de lulas e de arraias sejam muito mais hábeis em tal quesito, o camaleão é considerado o rei do mimetismo. Tentem descobrir o que esse aí embaixo está a mimetizar.

Instantâneos de um Saudoso e Remoto Passado (10)

"Quanto mais duro a esposa trabalha, mais bonita ela parece"
E o maridão, zeloso provedor e mantenedor do lar, cuida também da saúde de seu benquerer, compra Vitaminas PEP para ela. O povo antigo é que sabia das coisas!!!

quarta-feira, 15 de abril de 2015

W.I.B. - Mulheres de Preto

M.I.B. é a sigla, em inglês, para Men in Black, Homens (vestidos) de Preto. E engana-se redondamente quem pensa que MIB seja apenas mais uma produção hollywoodiana baseada em clássicos dos quadrinhos, que seja só o registro em filme da imaginação fértil de um argumentista ou roteirista.
Os MIBs são a lenda urbana mais temida entre ufologistas sérios. Relatos sobre os homens de preto remontam aos anos 1940, justamente a década a partir da qual as pessoas começaram a intensificar as narrativas de avistamentos de OVNIs. Supostamente, são agentes do governo estadunidense que surgem em locais onde aparições relevantes tenham ocorrido, para contatar e silenciar (por bem ou por mal) as testemunhas oculares do fenômeno. Para isso, avisariam testemunhas, pesquisadores e ufólogos para que não divulgassem suas informações, fazendo diversos tipos de ameaças, apreendendo evidências materiais ou até mesmo oferecendo grandes quantias de dinheiro.  
A concepção clássica de um homem de preto é um humano de idade indefinida, saudável, porte médio e totalmente vestido - obviamente - de preto. Sua aparência é descrita como exótica, forma mecânica de falar e andar, o que fez com que fossem comparados a robôs ou andróides.
A primeira aparição registrada dos MIBs foi relatada por Albert K. Bender, diretor de uma entidade então conhecida por International Flying Saucer Bureau [Departamento Internacional de Discos Voadores, IFSB] e editor de uma revista ufológica chamada Space Review. Em outubro de 1953, Bender publicou um comunicado informando que havia descoberto informações que iriam desvendar o mistério dos UFOs, mas não poderia publicá-las por ter recebido ordens contrárias. Alertou para que outros pesquisadores do ramo tomassem muito cuidado e sua revista deixou de ser publicada após este número.
Resumindo : os MIBs estão sempre a monitorar e a perseguir pessoas que descobrem, voluntária ou involuntariamente, certas verdades inoporutnas, que os governos mundias preferem manter em segredo. E dão um chega pra lá nelas.
Pois eu, o Azarão, estou há pouco mais de um mês sendo monitorado não pelos MIBs, mas sim pelas WIBs, as Mulheres de Preto. Que verdade incômoda eu terei descoberto? Que abordagem e castigo planejam para mim? Oferecerão-me dinheiro para eu parar de fazer revelações ao mundo via A Marreta? Ou oferecerão coisas mais "interessantes"?
Só descobri isso agora, justamente nesse momento. Estava eu a lidar com minha faina diária, a fazer meu faxinão, enquanto o filho pequeno via a televisão, num desses canais infantis, o cartoon network. Foi quando uma paródia do filme MIB, feita pelo pessoal da legendária revista satírica MAD, chamou-me a atenção e gelou-me as veias : estavam lá, em ação, os agente J e o agente K.
Explico : nunca assisti a MIB, não gosto do Will Smith, considero-o um baita dum canastrão, feito tantos outros consagrados por Hollywood, como Leonardo di Caprio, Tom Cruise etc; eu não sabia, portanto, quem fosse, como chamava, ou o que fazia seu persoangem no filme. Por isso - e aqui justifico as minhas incomuns burrice e falta de sagacidade nesse caso -, não fazia ideia do perigo que ando a correr, até agora. Estavam lá na tela : o agente J (Will Smith) a dar um aperto em uns informantes à procura do agente K (Tommy Lee Jones).
"J" e "K", perceberam, caros leitores do Marreta? O Marreta foi invadido por duas WIBs, disfarçadas sob a pele de moças belas e meigas. Uma armadilha para saber até que ponto o Azarão conhece a verdade que está lá fora?
De qualquer forma, as WIBs, até então, só travaram contato virtual comigo, através dos comentários do blog, nenhuma tentativa de contato real e pessoal foi encetada. Talvez queiram me pegar de surpresa, de calças curtas? Como as reconhecerei? 
Os MIB, segundo relatos de ufólogos que já passaram por poucos e boas em suas mãos, trajam sóbrios ternos e calças pretos, de um tecido estranhamente brilhante e fino, diferente dos conhecidos. Como se vestirão as minhas WIBs? Corpetes de couro negro, bem acinturando os pneuzinhos e estufando os peitos? Minissaias, botas com canos que chegam aos joelhos e cintas-ligas, tudo preto? 
Tomara! Tomara que sim!
Agora, é aguardar. Ver em que termos as WIBs tentarão negociar o meu silêncio.

terça-feira, 14 de abril de 2015

O Rascunho do ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente

Se não me falha a cinquentenária memória, o nome dele era Renan, um amigo de meu primo Leitinho e em cuja casa às vezes íamos para jogar Atari. Era início da década de 80. Renan possuía o cartucho do Decatlon, o jogo (na época, jogo era jogo, não era game) mais caro e com mais fases do Atari.
Lembro-me de que a casa de Renan me causou forte impressão  na primeira vez em que nela estive. Um ambiente dos mais bagunçados e desorganizados. Caótico, se comparado ao rigor e à limpeza espartana com que minha mãe e minha tia, a mãe de Leitinho, conduziam e gerenciavam seus lares.
Lembro-me um pouco também do pai de Renan. Era década de 80, época em que pai ainda era pai, época em que pai nem precisava falar nada, bastava nos olhar e nós já nos cagávamos. O pai de Renan se comportava mais como um amigo mais velho do que como pai; também causou-me estranheza.
Mas do que mais me lembro da casa de Renan era um folheto afixado à parede da sala, uma espécie de pequeno cartaz : Como Criar um Delinquente. E lá estavam arrolados alguns mandamentos de como tornar seu filho em um pequeno tirano. Nunca soube se o pai de Renan seguia os mandamentos à risca, ou se eles estavam lá à guisa de ironia, de um sarcasmo paterno a servir de aviso a qualquer tentativa de abuso filial. Prefiro acreditar na segunda opção. Que o cartaz é um soco com luvas de boxe de pelica na, à época, incipiente pedagogia moderna. Uma ironia das boas.
Mas o problema das brincadeiras, das ironias, é que a maioria não as reconhece como tais. Levam-nas à sério. Transformam-nas em leis.
Tenho certeza de que alguns pedagogos filhos das putas viram o tal cartaz e resolveram tomá-lo como base do ECA, o permissivo e licencioso Estatuto da Criança e do Adolescente. Sim, porque pedagogo é bicho dos mais inúteis e incompetentes, não tem o menor talento e capacidade para escrever ou criar algo original. É um colando o trabalho do outro, um comendo a merda que o outro cagou.
Não sei o cartaz que havia na casa de Renan era exatamente igual, ipsis litteris, ao que encontrei na net e reproduzirei abaixo, mas era muito parecido, de mesmo teor.
Vejam se é ou não é o rascunho do ECA? Se você é professor, dos sérios, dos que não se dão ao desfrute, dos que não engolem a patifaria do ensino pelo lúdico, muito menos que professor e alunos são iguais etc etc, sabe bem do que eu estou falando. E que eu tenho razão.
O do pai do Renan trazia apenas os mandamentos, não havia isso de "todos os pais deveriam ler, amor, orientação e educação.

Tomando uma Cerva, Jogando um Bilhar

Saudade da minha faculdade de Biologia. Saudade dos botecos pés-sujos onde rolava uma sinuca e cerveja gelada pela madrugada afora - só não rolava um dadinho nem cenas de sangue num bar da avenida São Joao. Saudade das risadas, das bobeiras y otras cositas más. Saudade, principalmente, das otras cositas más.
Alguém topa uma partidinha de sinuca, várias geladas, muita conversa jogada fora y otras cositas más? Só para fazer um agrado à saudade. Sem essa de matar a saudade. Que ela, muitas vezes, nos é agradabilíssima companhia e amante. Eu topo.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

VERSUS - uma parceria

O primeiro texto de "J" publicado aqui, ESPELHO/OHLEPSE, foi um sucesso de público e de crítica. Rendeu-lhe 163 visualizações até agora e, principalmente, vários e elogiosos comentários da velharada babona que frequenta o blog. 
Pelo visto, "J" gostou da mais que justa paparicação - sim, o texto é muito bom - e, apesar de dizer que joga fora tudo o que escreve, resolveu se arriscar de novo aqui nesse covil : enviou-me um outro texto, uma curta narrativa, VERSUS, para que eu publicasse caso considerasse adequado.
Havia, porém, uma condição bem explícita para a publicação : "J" enviou só a primeira parte da história, o complemento, eu teria que escrever, ao meu gosto, à minha revelia. Ou seja, "J" me propôs uma parceria. Como não sou de fugir desse tipo de desafio e também porque ando numa daquelas fases de intensa preguiça de escrever os meus próprios textos, aceitei, encarei o desafio de "J".
Para que saibam o que foi "J" que escreveu e o que fui eu, coloco as palavras dela em vermelho e as minhas em preto mesmo.

Versus
Ela dorme. Passa das 5h e os primeiros raios de sol brincam na janela. Ele não dormiu. Ele nunca dorme. O cigarro lhe faz silenciosa companhia enquanto observa o mundo lá fora. Já está vestido, precisa ir embora antes que o mundo o perceba ali. Ele caminha em direção à cama, aproxima-se dela num gesto que antecederia o beijo final. Ele resiste. Lá se foram tantos quase finais. Observa outra vez seu corpo esguio, a pele nua, os lábios entreabertos, os cabelos espalhados pelo travesseiro. Há tanto a ser dito, entretanto calar parece-lhe o mais apropriado. Ele reconhece que não resistirá outra vez. Inclina-se sobre ela e com a ponta do nariz roça-lhe o pequeno sulco vizinho à boca, esquadrinha seu rosto sem jamais o macular. Embora envolta no sonho, ela parece sentir sua presença: os lábios já denunciam um tom mais vivo, o peito arfa num ritmo novo. Ele se põe sobre ela – o peso nos antebraços. Levemente segura as mãos que jazem sobre a cabeça. Ele não perde tempo, quer sua presa indefesa quando despertá-la. Apoia o joelho sobre a coxa esquerda, separando as pernas relaxadas. Sua ereção a toca confessando suas intenções, mas ele não é como os outros, ele sabe o que está fazendo. Ela procura por um incauto beijo. Ele sorri, percorre-lhe o corpo sem clemência. Nunca tivera compaixão. Ali não existe comiseração. Ele segue com as investidas perniciosas. Morde o lábio enquanto percorre a perna direita, explora lentamente desfrutando a beleza do caminho. Frente à flor, um lampejo quase irresistível, a língua quase toca o seu próprio céu. Porém o corpo arde e as mãos anseiam e, bruscamente os dedos a invadem. Fora superado, traído mais uma vez pelo desejo. Ele os retira e os leva à boca. É tarde. Vagarosamente ele recua, está ciente da emboscada. Agora presa fácil ele a defronta: cabelos revoltos, olhos negros cintilantes, pelos eriçados. A fera está à espreita. Subjugado, ele sabe o erro que cometeu, conhece bem esse jogo, como sempre não há lugar para indulgências.
COME-A.

BOM-DIA

O dia só acende a luz
Só rasga as cortinas
E nos fura os olhos.
E cada um que se ajeite
Em seu a esmo
Em sua cegueira.
Cada um que providencie a própria bengala branca
Seu par de óculos escuros
Sua sanfoninha e sua cuia de esmolas.

Dar vivas, então, a cada novo dia, por quê?
Saudar o dia com bons-dias de comercial de dentifrício, qual o quê?
Pôr-me banhado, aprumado, bem barbeado às vistas e à apreciação do dia, sem o quê?

Encaro-o de igual para igual : sem vontade.
Torno-me seu mais idêntico univitelínico
Sua melhor superfície refletora
Seu mais fiel regurgito :
Saio despenteado, barba malfeita, café mal tomado, puído, encardido, solas furadas, vistas cansadas (não exatamente de ver, mas do que veem), estômago revirado e humores e hálito dos infernos.