domingo, 30 de agosto de 2009

CHARLOTTE ROCHE

Sei lá se a literatura dessa moça, Charlotte Roche, vale alguma coisa, mas em seu livro, fortemente autobiográfico, através da personagem Helen, ela marreta as mulheres "limpinhas", obcecadas por depilação e excesso de perfumes; recomenda que as mulheres se perfumem apenas com gotinhas do líquido vaginal atrás das orelhas.
Assume publicamente que sai com calcinhas furadas e cultiva um belo dum matagal entre as pernas, a famosa estética Cláudia Ohana.
"A depilação está se tornando uma coisa extrema, uma loucura. As mulheres não têm mais pelos pubianos. Parecem menininhas" , diz Charlotte.
E eu concordo absolutamente com ela!!!
Como disse, não sei se ela tem algum talento literário, não li ainda seu livro "Zonas Úmidas", mas que a moça é uma grande marretadora, isso é.
Se quiserem ler a entrevista da moça à revista Época, clique no link abaixo:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI64004-15228,00-CHARLOTTE+ROCHE+A+DEPILACAO+ESTA+SE+TORNANDO+UMA+LOUCURA.html

sábado, 29 de agosto de 2009

TOFRANIL

Tofranil, antidepressivo tricíclico.
Sugeriram-me, assim meio em off, que eu procurasse um psiquiatra à obtenção da receita de tal fármaco. Sugeriu-me, justamente, a pessoa a quem recorri para que eu não tivesse que chegar a esse ponto.
Ironia? Sim. Da mais destilada.
Mas quem é que não anda dando topadas com elas - as ironias - feito dedo mínimo do pé em pernas e pés de mesas e batentes de portas? Quem é que não anda por campos minados delas feito sola de sapatos a pisar em merda de cachorro?
Esse prodígio da farmacologia moderna faz promessas de aplacar minha ansiedade, abrandar meu convívio social, amansar minha compulsão de verificar repetidamente se fechei o gás, janelas, torneiras, portas, geladeira, se desliguei o ferro de passar roupas, lâmpadas, ventiladores, se fechei o gás, janelas, torneiras, portas, geladeira, se desliguei o ferro de passar roupas, lâmpadas, ventiladores, se fechei o gás, janelas, torneiras, portas, geladeira, se desliguei o ferro de passar roupas, lâmpadas, ventiladores, se fechei o gás, janelas, torneiras, portas, geladeira, se desliguei o ferro de passar roupas, lâmpadas, ventiladores, se fechei o gás, janelas, torneiras, portas, geladeira, se desliguei o ferro de passar roupas, lâmpadas, ventiladores...
Promete, por fim, tornar-me mais feliz.
Daí, lembrei-me da história do cara com diarreia que vai à farmácia a fim de resolver sua questão e o farmacêutico, distraído, ao invés de um anticagatório, vende-lhe um calmante. Horas depois, o cara retorna à farmácia e o balconista lhe pergunta se melhorou.
O cara responde : "Tô todo cagado, mas calminho, calminho".
Pesquisei a bula na internet, ver os efeitos colaterais, alguns deles:
- secura da boca, o que pode levar ao aumento da incidência de cáries;
- ganho de peso;
- distúrbios visuais;
- prisão de ventre;
- cansaço e fadiga;
- distúrbios do sono;
- diminuição da libido;
- cansaço e fraqueza muscular;
- aumento da frequência cardíaca.
Puta que o pariu!!! Isso lá é remédio?
Vou, se decidir pelo uso, ficar banguelo, obeso, cegueta, entupido, sonâmbulo, broxa e - também pudera - ter um infarto do miocárdio.
E, já ia me esquecendo, garante a bula, ficar muito mais feliz.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Oração dos Ateus

Essa oração - mais uma contribuição do Samuel, o famoso Nariz, ao blog - mostra que ateu não é o cara que não acredita em nada; é o cara que simplesmente não acredita em tudo, em qualquer coisa, em toda besteira não provável que tentam lhe empurrar pela goela.

ORAÇÃO DOS ATEUS (ou a Prece ao DNA)

Creio no DNA todo poderoso
criador de todos os seres vivos,
creio no RNA,
seu único filho,
que foi concebido por ordem e graça do DNA polimerase.
Nasceu como transcrito primário
padeceu sobre o poder das nucleases, metilases e poliadenilases.
Foi processado, modificado e transportado.
Desceu do citoplasma e em poucos segundos foi traduzido à proteína.
Subiu pelo retículo endoplasmático e o complexo de Golgi
E está ancorado à direita de uma proteína G
Na membrana plasmática
De onde há de vir a controlar a transdução de sinais
Em células normais e apoptóticas
Creio na Biologia Molecular
Na terapia gênica e na biotecnologia
No sequenciamento do genoma humano
Na correção de mutações
Na clonagem da Dolly
Na vida eterna.
Amém

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Revoadas

Pus-me de pé, hoje, sobremaneira antissocial.
De antemão exasperado pelos rostos, pelas vozes, pelos cheiros, pela geleia nojenta de gente que tenho que aturar a garantir meus parcos vencimentos, meu quinhão de sal - os soldados romanos tinham seus soldos pagos em sal, daí o termo salário.
Talvez fosse tão-somente os últimos fiapos de um sono abortado ainda enroscados no áspero da cerveja da noite passada, talvez esse clima de névoa seca, talvez influência do beligerante planeta Marte que, hoje, dizem - recebi 4 e-mails, por volta da meia-noite, fulgurará no céu feito em uma segunda, cheia e sangrenta lua.
O mais certo, porém, é que seja a falta de revoadas.
Quer coisa mais bonita e renovadora de ânimo que uma bela e revoltosa revoada?
Estou precisado de uma boa revoada.
E pode ser revoada de qualquer coisa :
de maritacas, de latas de cerveja, de amigos que você mais via há 10 anos atrás (os amigos da "Lista" do Oswaldo), de falenas de asas de pó de giz, de falenas de meia arrastão e minissaia, de músicas do Chico, de gavetas abertas, de abraços que nunca foram dados, de cartas amareladas, de bucetinhas que você tanto quis e não comeu, de bucetinhas que você nem queria tanto e acabou comendo, de piadinhas infames, de anjos com enormes tetas, de arroubos insones, de petálas de ipê-amarelo, roxo, branco e rosa, de matinês de cinema, de navalhas à cata de uma jugular, de gatos a acasalar nos telhados cheios de lodo, de livros do Monteiro Lobato, de morcegos (dos bonzinhos) com a boca melada de sumo de jambo, de nuvens com a forma dos sonhos, de sacis de carona em redemoinhos, de baleias e golfinhos encalhados por ousarem seguir diferente rota, de cafunés, de lembranças a escorrerem salgadas dos olhos.
Estou a ouvir dizer de uma intensa revoada de um novo vírus de uma nova gripe.
Contudo, essa tal não aplaca minha necessidade de revoadas, uma vez que invisível a não-nanoscópicas retinas.
A noite não me traz mais revoadas há muito.
Só sei que, hoje, vou assistir a um episódio repetido de House, em seguida, subir ao telhado do prédio por um tipo de alçapão invertido que dá para um bat-sótão, e daí para a cobertura.
Estará em minha companhia, uma garrafa de um bom e seco vinho tinto.
Sentarei-me à beira do telhado e lá ficarei, a sorver pelo gargalo o vinho e o bordô do céu, em aguardo do plenilúnio de Marte.
À espera de Marte pleno nos Ares.
E, com sorte, quem sabe, de uma revoada de granizos mornos.

sábado, 22 de agosto de 2009

Alex Vallauri

Lembro da primeira vez que vi uns grafites desse italiano (apesar de nascido na Etiópia), era final da década de 70, começo da de 80, de novo minha memória não me dá garantia absoluta.
Morador de cidade do interior, ainda que não das menores, nunca tinha vista nada parecido, acredito até que o termo "grafite" não me fosse familiar para designar aqueles desenhos feitos a spray, na época só havia pelos muros de minhas andanças a pichação.
Vi esses grafites de Alex Vallauri nas paredes do SESC aqui da cidade onde moro. E fiquei embasbacado, atordoado, confuso. Aquilo era absolutamente novo pra mim.
Desenhos traçados com tinta spray através de moldes vazados, a chamada Stencil Art.
Pareceu-me possível, quase fácil fazer aquilo que acabava de ver nas paredes, as figuras femininas ao telefone, encostadas nos postes à espera de clientes, uma bota preta de salto fino e, acho que sua marca registrada, as ninfas de Vallauri em danças circulares.

Até tentei criar uns moldes vazados, umas máscaras...
Mas deu-se o de sempre: constatei que tinha mais pretensão que talento.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Kakinho Big Dog

Quem gosta do humor genuinamente brasileiro, baixo, chulo, politicamente incorreto, não obstante muito inteligente, não pode continuar a não conhecer Kakinho Big Dog.
Músicas destaques: "a volta do Bráulio", "ataque epilético", "paixão de gaúcho", "cumpade osório", "capô de fusca", "pai toshiro", "zé gaguinho" ; procurem e baixem na net.
Só pra terem uma amostra, posto abaixo a letras de "ataque epiléptico"
Esse cara é uma marretada.


ATAQUE EPILÉPTICO

LÁ na festança tinha pinga tinha dança,
Saculejo di porpança, aprontei um escarcel.
E era cada muiézão, cada bitela,
Escolhi a melhor delas, piquei a mula pro motel.
Tomemo banho quente inté ficar vermeiu,
Ja cas calça nu joelho comessemo a se beijar.
Nóis se garrava chei de ansea e de malicia,
Doidim com a semergoissa com vontade de cruzar.

E parecia que eu possuia motor,
Miór qui firme pornô era minha evolução.
Eu fundava e desfundava com destreza,
Eu moiava a calabresa pra carcar no parmezão.
A muié gritava i rivirava os zói,
Babava q nem um boi, resmungando palavrão.
Tanto delirio, rala i rola no entra i sai.
Que nem abriu em cim em baixo puxa e vai.

(Refrão)

Eu feliz já me gabando, do meu desempenho atlético.
De amor me derretendo, mais a muié tava tendo,
Era um ataque epilético (2x)

E parecia que eu possuia motor,
Miór qui firme pornô era minha evolução.
Eu fundava e desfundava com destreza,
Eu moiava a calabresa pra carcar no parmezão.
A muié gritava i rivirava os zói,
Babava q nem um boi, resmungando palavrão.
Tanto delirio, rala i rola no entra i sai.
Que nem abriu em cim em baixo puxa e vai.

(Refrão)

Eu feliz já me gabando, do meu desempenho atlético.
De amor me derretendo, mais a muié tava tendo,
Era um ataque epilético (2x)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Saudades De Quando Os Robôs Eram De Lata

Ontem, longe de ser um de meus passeios preferidos, acabei por ir a um dos shoppings centers aqui da cidade. Sempre me entristeço com o gênero humano quando vou a esses lugares, mas ontem me entristeci mais.
Por conta do curto tempo de que eu dispunha para um compromisso que teria logo mais, acabei almoçando por lá, também.
A praça de alimentação estava atulhada de gente. Gente? De seres, gente, não sei.
Mesmo búfalos, gnus, girafas, zebras e outros "irracionais" conseguem ser mais organizados quando se reúnem à volta de um lago lamacento para beber.
Muitos desses seres (vou evitar chamá-los de gente daqui por diante), e garanto que não eram uma parcela inexpressiva da manada que ali se reunia, não se apercebiam do que acontecia em seu redor, isolados que estavam em seus aparelhos eletrônicos.
Raras as mesas onde duas ou mais pessoas conversavam ou, ainda que não conversassem, que apenas se alimentassem.
Esses seres alheios apresentavam um padrão básico: um laptop aberto à sua frente, um macqualquerbosta na boca, um fone de seus mp3, mp4, mpqp no ouvido e outro fone no outro ouvido, de seus celulares; uma mão no mouse do laptop e outra a se alternar entre segurar o sanduíche e verificar mensagens no telefone.
O rôbo do clássico Metropólis de Fritz Lang (foto acima) tem menos fios que esses seres que fiquei a observar ontem, imersos numa bolha virtual, em um mundo de catatonia e imbecilidade. Poderia passar a Angelina Jolie ao lado desses imbecis, que eles nem notariam.
Alguns brincavam com jogos em seus laptops, outros liam e-mails, outros consultavam coisas do trabalho.
E, desgraçadamente me ocorreu, alguns estivessem até "estudando", assistindo a "aulas" em seus laptops, esses cursos à distância que existem hoje em dia, talvez estivessem consumindo a imagem de um professor na tela juntamente com o macqualquerbosta.
Realmente não acredito nesses filmes de ficção que vaticinam um mundo onde as máquinas controlem humanos, mas vai ficar - já está - cada vez mais difícil saber onde começa um e termina o outro.
Chamem-me do que quiserem, mas eu me recuso a ser um professor virtual.
Nego-me a ser consumido juntamente - e no mesmo nível de importância - com um alimento
fastfood, com uma mensagem em mau português no celular e com uma música sertaneja no mp3.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Palavras Cruzadas

Agora, depois de velho, dei de apresentar a tal da ansiedade.
Frescura, viadagem, mesmo.
Mas fazer o quê?
A ansiedade vem da consciência (no meu caso) ou do saber instintivo (no caso da maioria) de que já se fez tudo o que tinha de ser feito, de que já deu sua cota à vida e que, apesar disso, ainda lhe restam muitos anos a serem vividos, que ainda vão lhe cobrar uma atividade, uma utilidade por muito tempo.
A ansiedade é provocada por essa procura do que ainda fazer, do que ainda ser. Quando não há mais nada, quando não há mais o quê. E é natural que assim seja, que não haja mais o quê. A ansiedade vem do homem em ser antinatural.
A ansiedade é deflagrada pela consciência do bicho que sabe do seu papel já cumprido, que sabe que já está a torrar mais oxigênio que o quinhão que lhe foi destinado.
Ansiedade é o sintoma manifesto pelo bicho que, em consciência de todo o supradito, só quer descansar, mas sabe que não irão deixá-lo.
Comprar e consumir exageradamente - seja comida, roupas, eletroeletrônicos e outros "teres" - não aplaca minha ansiedade, como é regra geral.
Prozac, Rivotril e outros ansiolíticos, ainda não os experimentei (li, dia desses, que o Rivotril é o remédio mais vendido hoje no Brasil, mais que aspirina, merthiolate, hipoglos, lacto-purga).
Maconha, outro ansiolítico, idem: ainda não a provei. Não por preconceito, não tenho nada contra droga nenhuma - salvas as religiões. É que, simplesmente, não me agrada a ideia de nenhuma espécie de fumaça a me invadir as ventas. Se houvesse maconha líquida, talvez já tivesse tomado uns goles.
Três ou quatro latinhas de cerveja - visto que o que ganho não chega para um bom Jack Daniels - têm contribuído para um sono menos entrecortado.
Mas o que funciona melhor para mim são as palavras cruzadas. Verdade.
Quando fico andando pra lá e pra cá, sem o que fazer, meio aflito, pego e vou preencher umas horizontais e umas verticais. Consigo me concentrar nas cruzadas em qualquer ambiente ou situação, em casa, na escola, em frente à televisão, com pessoas grasnando à volta, com cachorros latindo, com o barulho do trânsito.
Carrego-as, inclusive, ao banheiro. E fico ali, arriando, riscando a porcelana... e cruzadeando.
Mas são, as palavras cruzadas, uma droga como qualquer outra, doses cada vez maiores vão sendo requeridas. O cara começa com as do nível fácil, passa para o médio e assim por diante.
Há tempos que já me utilizo das que trazem a inscrição "Difícil" em sua embalagem, porém acho que estou sendo ludibriado, que estou a comprar "comprimidos de farinha", um placebo.
De qualquer forma, sempre aprendo algo novo ou, ao menos, lembro e reforço o que já conhecia; de qualquer forma, ainda está a fazer efeito.
As palavras cruzadas podem nem dar um "barato" feito essas fluoxetinas ou clonazepans da vida, mas são bem mais baratinhas.
E bem mais saudáveis.
Saudáveis? Sei lá.
Mas também quem aqui está atrás disso?

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

José Saramago - O Fator Deus

Alguém já se tocou, além de nós, ateus, é claro, que não existe ateu burro?
Texto contundente de Saramago, a seguir:

O FATOR DEUS

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá “ver” cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, seqüestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.
As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mais limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez “aqui estou” quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, devíamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.
E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “fator deus”, esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um Deus, mas o “fator Deus” o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, e não a outra...) a bênção divina. E foi no “fator Deus” em que o Deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um Deus andou a semear ventos e que outro Deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres Deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.
Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “fator Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

MULTIVERSO

NÃO É QUE TENHA DADO ERRADO;

SÓ NÃO DEU CERTO, SÓ ISSO.

PERSISTE A POSSIBILIDADE,

EXISTE AINDA UM PLANETA DESABITADO.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

AUGUSTO DOS ANJOS

Eu tenho algumas - muitas - invejas literárias, escritos que eu gostaria de ter escrito.
Entre elas, está esse soneto de Augusto dos Anjos, o poeta da putrefação.
Nessas 14 bem arquitetadas linhas, ele condensa a perfeita tradução da natureza humana.

VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

AGRIDOCE

AGRIDOCE 
(Pato Fu)
Por que você às vezes
Se faz de ruim?
Tenta me convencer
Que não mereço viver
Que não presto, enfim
Saio em segredo
Você nem vai notar
E assim sem despedida
Saio de sua vida
Tão espetacular
E ao chegar lá fora
Direi que fui embora
E que o mundo já pode se acabar
Pois tudo mais que existe
Só faz lembrar que o triste
Está em todo lugar
E quando acordo cedo
De uma noite sem sal
Sinto o gosto azedo
De uma vida doce
E amarga no final
Saio sem alarde
Sei que já vou tarde
Não tenho pressa
Nada a me esperar
Nenhuma novidade
As ruas da cidade
O mesmo velho mar.

O Professor-Gabiru

Há umas duas décadas, pouco mais, pouco menos, desconto dado à minha memória já não tão boa, ouvi dizer do Homem-gabiru.
Homem-gabiru é uma designação criada em Pernambuco por pesquisadores do Centro Josué de Castro: Tarsiana Portela, Daniel Amos e Zelito Passavante.
Esse homem seria o início do surgimento de uma possível subespécie humana, uma derivação do gênero ajustada a viver em condições extremas de miséria, adaptada a sobreviver com um gasto mínimo de energia.
A grosso modo, o homem-gabiru apresentaria um nanismo nutricional, estatura bem abaixo da média humana, atributo que lhe daria vantagens sobre os normais nessas regiões de alimento escasso, pois seu menor organismo requereria menor gasto energético.
Nessas regiões, seriam selecionados os indivíduos com esse nanismo, o que poderia levar à consolidação de uma derivação da espécie humana. Obviamente, o homem-gabiru também teria o intelecto bem reduzido em relação ao Homo Sapiens, no qual já não é grande coisa. O gabiru consome menos energia: menos energia, menor atividade cerebral, visto que cerca de 1/5 da energia consumida por nós é gasta pelo cérebro.
Não tenho ouvido falar muito do homem-gabiru ultimamente. O que não significa que ele não continue a existir, simplesmente não é mais noticiado. Mas, aparentemente, esses programas assistenciais do governo, essas esmolas eleitoreiras, deram uma barrada no processo de formação do homem-gabiru.
Mas se o homem-gabiru não existe como subespécie biológica, ele existe aos montes no aspecto comportamental do brasileiro, sobretudo no âmbito profissional.
Profissionais mal-formados é o que mais se vê hoje em dia. Desaculturados com diplomas.
Há médicos-gabiru, engenheiros-gabiru, administradores-gabiru, eletricistas-gabiru, encanadores-gabiru... o processo se alastrou por todas as áreas, em todos os niveis.
O mais perigoso dos gabirus: o professor-gabiru.
Um médico-gabiru, um engenheiro-gabiru, não necessariamente formam outros iguais.
O professor-gabiru, inevitavelmente, forma outros gabirus.
O professor-gabiru é aquele que não prepara sua aula, aquele fica conversando sobre a vida pessoal - dele e do aluno - ao invés do conteúdo que lhe cabe, aquele passa um filme para a classe sem nenhuma relação com o contexto, aquele que leva o aluno a passeios tão despropositados quanto, aquele que se faz de amigo do aluno para que esse desculpe sua inabilidade, aquele que se mete a ser psicólogo, conselheiro, assistente social e etc não por bondade, mas simplesmente porque não é capacitado nem para ser professor, é o professor que faz suas especializações em cursos de fim de semana, à distância, não-presenciais, é aquele que nem consegue se expressar num razoável português.
Mas ele nem é o mais perigoso.
O mais perigoso é o professor, os raros professores, que não é gabiru, mas que está desgraçadamente se dispondo a formar gabirus.
Esses professores tem sólida formação acadêmica, armanezam um grande cabedal de informações, são bem formados culturamente, sabem do valor do conhecimento obtido de modo árduo.
E apesar disso, de uns tempos para cá, tornaram-se divulgadores do conhecimento superficial, frugal, leviano, até. De uns tempos para cá, vêm renegando o estudo e conhecimento verdadeiro, os responsáveis por serem o que são.
Quem são esses não-gabirus formadores de gabirus? São aqueles que dão aulas nesses cursos à distância, são aqueles que pensam - talvez nem por maldade - que a grande massa é, como eles, capaz de estudar por conta própria, sendo dispensável a figura do professor, são aqueles que gravam suas aulas em vídeo, autênticos Cid-Moreiras da educação.
Se eles fossem também gabirus e formassem gabirus, estariam desculpados.
Não é o caso.
Execro aqui esse formadores de gabirus e sem medo de parecer saudosista. Até porque não ser saudosista não é aceitar toda e qualquer mudança dos tempos, se a mudança for para pior não é ser saudosista : é ter princípios, é não vendê-los por meros centavos.
Execro aqui esses Cid-Moreiras da educação.
Boa noite!

domingo, 9 de agosto de 2009

Professor É Burro, Sim

Por que é obrigatória a presença de um farmacêutico diplomado numa farmácia? Ainda que ela só venda remédios alopáticos e com receita? O farmacêutico não pode receitar, pode?
Por que, apesar da lei facultar ao cidadão o direito de se representar, a presença de um advogado é imprescíndivel num processo? Mesmo que seja uma briga de vizinhos banal?
Por que uma indústria que fabrique, digamos, xampú e que já o produza há muito tempo, que só repete infinitamente a mesma fórmula, precisa de um químico responsável para assinar a mesma velha fórmula de sempre? Sabemos que, na grande maioria dos casos, o químico apenas passa no fim do mês para receber o salário pela sua assinatura.
Por que uma simples e vulgar pet shop, ainda que só venda ração e ofereça serviços de tosa e banho, precisa ter um veterinário responsável?
Simples.
A resposta pra todas as perguntas, na verdade uma única, é : sobrevivência profissional.
Todas essas categorias citadas, e mais outras diversas, através de seus conselhos regionais, impõem-se pela lei.
Vão ocupando legalmente esses nichos. Todas as categorias profissionais impõem a sua presença, a sua "necessidade", ainda que pouco necessárias sejam. E elas estão certas. Se quer que sua profissão seja valorizada, você tem que ser o primeiro a afirmar categoricamente que ela tem valor. Mesmo que não tenha.
Mas existe uma categoria que faz exatamente o oposto.
Uma categoria que é a primeira a dizer que seus serviços são dispensáveis ou que podem ser feitos por qualquer um.
Uma categoria que comete, cada vez mais, suícidio profissional.
É a categoria dos PROFESSORES.
Professores, hoje, gravam aulas que serão passadas 0nline, simultaneamente, em diversas escolas. Escolas onde, em cada uma, deveria existir a presença de um outro profissional naquele momento. Mas não há. Há a tela.
E os que isso fazem dizem que são ótimos profissionais, que estão "antenados" com as novas tecnologias. Balela. São assassinos da categoria.
Professores, hoje, fazem seus cursos de especialização - complementação ou coisa que valha - à distância, em faculdades de "fim de semana", de qualidade mais que questionável.
Vai ser burro assim na puta que o pariu.
Quando um professor se torna aluno de um curso à distância, não-presencial, ele está sendo o primeiro a afirmar que a figura do professor não é importante no processo de aprendizagem.
É um tiro no pé, caralho!!!! (e no caralho, também).
Por isso digo, o que não me torna bem visto em meu ambiente de trabalho, que o professor merece tudo o que ele apanha. E mais: que apanha pouco.
Não podem : farmácia sem farmacêutico, xampú sem químico, tribunal sem advogado, pet shop sem veterinário...
Escola sem professor, pode. E com o aplauso dos mesmos.

Dizem que o professor é mal remunerado.
Discordo totalmente.
Qualquer que seja o salário pago à burrice, ele é sempre alto.

sábado, 8 de agosto de 2009

Caio Fernando Abreu

Escritor fantástico.
Quem não conhece deixou de ter ótimos momentos de leitura, tristes, amargos, sangrentos e, sobretudo, de uma tentativa indescritível de sobrevivência.
Dois endereços para leitura do autor:http://www.pensador.info/autor/Caio_Fernando_Abreu/; http://semamorsoaloucura.blogspot.com/2006/09/os-sobreviventes.html.

Algumas frases retiradas desses endereços:

"Acho que sou bastante forte para sair de todas as situações em que entrei, embora tenha sido suficientemente fraco para entrar."
"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."
"Importante é a luz, mesmo quando consome. A cinza é mais digna que a matéria intacta".
"Tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido"
"Tenho dias lindos, mesmo quietinhos"
"Mudei muito, e não preciso que acreditem na minha mudança para que eu tenha mudado"
"Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva".
"Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem".
"Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções."

E uma das minhas preferidas:

"Não, meu bem, não adianta bancar o distante: lá vem o amor nos dilacerar de novo..."

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Lutador

O escuro da tela se desfaz sobre um mural de recortes de jornal.
A câmera segue uma única trajetória por sobre as notícias dos desenlaces dos combates, trajetória única com dois sentidos: crescente cronologicamente, 1987 a 1989, e descendente na extensão física do mural bem como no aspecto dos êxitos do lutador, do auge ao nocaute, e salta 20 anos, do mural para um vestiário e cai sobre as costas velhas e reumáticas de Randy "The Ram", o das fotos dos recortes dos jornais.
Lutador de luta livre, vertente de combate que teve sua expressão maior aqui no Brasil através do programa Telecatch, décadas de 60 e 70, nas Tvs Excelsior e Record, nas figuras de Ted Boy Marino, Verdugo, Fantomas e outros.
Eram aquelas lutas de "marmelada", coreografadas, resultados combinados nos vestiários. Os resultados eram combinados, os golpes ensaiados, porém os machucados, as torções, as contusões aconteciam de fato, eram verdadeiras. Não havia a verdade. Nem por isso não havia o desgaste.
Randy "The Ram" (Mickey Rourke) é um desses lutadores, um homem que viveu de encenar, foi um campeão de mentira há vinte anos, um arremedo da própria mentira no tempo atual.
Entope-se de analgésicos para encenar a si próprio um corpo ainda vigoroso, acreditar talvez que ainda suporte mais uns vinte anos. Vive mais de dar autógrafos e tirar fotos com fãs em convenções que de lutas propriamente, mas ainda se arrisca nos ringues, contando com o respeito e condescendência dos lutadores jovens.
Sobrevém um infarto após uma luta, dizendo ao homem que viveu de encenar que o espetáculo havia terminado, não haveria mais encenações, só mundo real. Volte a lutar e morra, foi o diagnóstico do médico.
The Ram mantém um único relacionamento próximo do que pode ser classificado como afetivo, com Cassidy (Marisa Tomei, em perfeitíssima forma), uma stripper. Uma stripper também é pura encenação, uma stripper, nos moldes daqueles bares americanos, dança sem ser uma bailarina e é uma puta que não transa com os clientes, oferece uma dança que não é dança e sugere um sexo que não vai acontecer, as passarelas acima dos balcões por onde desfilam e os postes por onde se esfregam são os seus ringues, seus combates encenados. Esse relacionamento é restrito aos limites do clube da stripper; não existem The Ram e Cassidy no mundo real.
The Ram – Robin, no mundo real, tenta: carregador de caixas em um depósito, atendente de balcão em uma delicatessen, podia até ter tentando ser professor.
Faz uma triste e melancólica tentativa de reaproximação da filha, não funciona, ele é inepto para o mundo real, a filha o rejeita. Procura Cassidy – Pamela fora do clube – em outra tentativa de um vínculo real, também é rejeitado.
Até que um cliente da delicatessen o reconhece no balcão, reconhece “The Ram” por detrás do avental, da touca para os cabelos, do crachá escrito Robin. O reconhecimento foi pior que o não-reconhecimento. Ser reconhecido e não ser mais o objeto do reconhecimento, ser uma caricatura da caricatura, um campeão de mentira fatiando frios num mercado qualquer. Ele soca a máquina fatiadora, corta a mão e sai espalhando seu sangue pelo mercado. Se era sangue que a realidade queria dele, acabava de conseguir. Pela última vez.
The Ram vai viver mais uma vez, nem que seja a derradeira, mas que seja como The Ram. Faz ligações, remarca lutas.
Puta arrependida, Pam/Cassidy, vai até The Ram, tentar impedi-lo. Mas já é tarde, não há mais Robin, nunca houve, só há Randy The Ram. Ela o segue até o local da luta e até o último momento, segundos antes da entrada dele pelo corredor que o levaria ao ringue, ela tenta.
Ele entra. E volta a viver. Luzes, cartazes com seu nome, gritos do público. E o principal: um puta sorriso na cara dele, ali ele existia. A morte perto disso é muito pouco, não assusta.
A luta começa, programada para ele ganhar, socos, pontapés, acrobacias, cadeiras se quebrando em cabeças. O adversário está “subjugado”, mas falta o gran finale, falta o golpe para finalizar a luta, o golpe que sempre foi sua marca registrada, ficar em pé num dos cantos do ringue, se lançar ao ar e cair com o cotovelo no peito do inimigo, o golpe “The Ram esmaga”.
Começa a sentir dores no peito, no entanto. Subir ao canto do ringue e se lançar poderá ser fatal, o público o impulsiona, alheio a sua dor, à sua impotência. Ele sobe. E antes de se lançar, olha uma última vez para o alto das arquibancadas, para a pequena porta por onde desceu ao ringue, ver se Pam/Cassidy estava lá, olhando, esperando por ele. Ela não estava.
Ele se lança ao ar.
E a tela volta a ficar escura.
The End.
Morreu? Nunca ficaremos sabendo.
E pouco importa.
Importa que o cara executou o seu “The Ram esmaga”
Importa que ele deu seu salto no vácuo com joelhada.
Um brinde de vodka-tônica aos que ainda saltam.

A Noite Será Devagar, Bukowski, é Claro

bem, aqui estou eu
de novo
ouvindo as boas e velhas
músicas
de novo,
sentindo tristeza,
a boa
tristeza
à moda antiga
em que as lágrimas
não chegam
a sair.
bom.
ouço mais um pouco.
a mente pode
consumir quantidades
mágicas de
memória
enquanto a noite se
desdobra
noite adentro,
enquanto outro charuto
é acesso,
como se pode ficar
terrivelmente amuado
quando velhas
músicas seguem-se
uma às
outras,
rostos são
lembradas,
rostos jovens,
como fatias novas de uma
maçã,
estão mortos
agora,
quase todos
eles
mortos
agora.
a aparente
beleza e
a aparente bravura,
se foram.
sentado aqui
permitindo que meus
melhores sentidos
sejam diluídos pela
melancolia,
um homem
velho,
lembrando
de novo,
olhando de cima
a baixo o bar imaginário
cheio de assentos
vazios,
pensando naquela
criança com os loucos
olhos
vermelhos
que sentava lá
enchendo o copo e
enchendo e enchendo e
enchendo
de novo
ao ponto da
imbecilidade,
agora lembrando,
ouvindo
de novo,
permitindo a idiotice
entrar
de novo,
somos todos
idiotas para sempre
idiotizados
para sempre.
alegremente.
agora.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

OS INOCENTES - Rubem fonseca

O mar tem jogado na praia pinguim
[tartaruga gigante, cação, cachalote.
Hoje: mulher nua.
Depilada pareceria enorme arraia podre.
Porém cabelos e pelos lembram animal
[da família do macaco;
corpo lilás de manchas claras mármores de carrara
[incha exposto;
sangue, tripas, ossos perderam calor e pudor;
olhos, lábios, boca, vagina: peixes devoraram.

Banhistas instalam barracas longe da coisa morta,
logo envolvida por enorme círculo de areia, indiferença,
[asco.

Policial limpa suor da testa, olha gaivota, céu azul.
Afinal, rabecão: corpo carregado.
Espaço branco vazio cercado
pelo colorido das barracas, lenços, biquínis, chapéus,
[toalhas,
por todos os lados.

Chega família:
"Olha, parece que reservaram lugar para nós".