sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Só os Gatos Caem Sempre de Pé

Carne :
Equilibrista ébria
Entre o viço e a decomposição.

Escrever:
Uma maneira de não olhar para baixo,
Uma maneira de quase disfarçar o medo,
Enquanto espero :
A corda bamba arrebentar,
A hora da cópula com o abismo.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Noticiário Local, da sucursal do planeta Jota

Curioso seria se em nosso mundinho egoísta e vil houvesse um pôr do sol que começasse com o nosso primeiro bocejo do dia, 
O hálito quente e mórbido das manhãs beijando a fresca vida, 
Mais, seria ideal que os dias se findassem quando a poeira do sono pousasse, 
Ou tanto melhor, 
Pesasse sobre nossas ponderosas cortinas, 
Pálpebras ciliadas tão cansadas de varrê-las durante o estafante dia. 
No entremeio nada que se preze 
E tudo da maior importância relatado na programação televisa, 
Nos rádios, nos outdoors - você mesmo - a manchete do dia, "Carlos Eduardo finalmente passou no exame de habilitação" 
E anéis saturnianos adornando cicatrizes umbilicais.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O Azarão, Cuspido e Escarrado

Quando se quer expressar, de forma enfática e categórica, a grande semelhança entre duas pessoas, é dito que "fulano é cuspido e escarrado o beltrano". Uma maneira um pouco mais polida - só um pouco -, porém, não menos contundente e cabal de dizer que "a cara de um é o cu do outro".
Li, certa vez, que tal expressão - cuspido e escarrado -, cunhada pela ignorância do povão, degenerou-se de outra, mais culta e elegante: esculpido em carrara.
Carrara é o nome de uma região da Itália possuidora de jazidas de um mármore de altíssima qualidade, o preferido pelos artistas do Renascimento para darem forma às suas esculturas. As estátuas e bustos confeccionados nesses mármores pelos gênios renascentistas atingiam uma tal semelhança com as pessoas neles retratadas que, quando duas pessoas eram muito parecidas, passou-se a dizer que uma parecia ter sido esculpida em carrara a partir da outra.
Para a inculta sabedoria popular, esculpido virou cuspido; carrara, escarrado. Avacalharam-lhe com a forma (do original), porém, preservaram-lhe o significado. Cuspido e escarrado ao esculpido em carrara? Ou esculpido em carrara o cuspido e escarrado? E que ninguém jamais diga que não existe genialidade na ignorância.
Eu não tenho atributos - sejam eles físicos, fisionômicos, culturais, acadêmicos, intelectuais, atléticos, sexuais ou morais - para merecer ser esculpido em carrara. Mas para ser cuspido e escarrado, acredito que atenda a todos os pré-requisitos. E foi o que se deu.
Há cerca de duas, três semanas, um aluno, um dos poucos a quem respeito, não só pela dedicação à minha disciplina, como também, e sobretudo, pela educação com a qual sempre se dirigiu aos professores e pelo enorme talento artístico demonstrado em vários desenhos que, vez em quando, me mostra, procurou-me à saída da última aula e perguntou se podia esculpir um busto meu.
Soubesse disso, meu amigo Samuel, o famoso e desaparecido Nariz, primeiro, riria desbragadamente, a não mais poder, depois, uma vez retomado o fôlego, diria que o busto ou seria feito em escala 1/1000, ou não haveria argila suficiente no mundo para esculpir minha cabeça em tamanho real. Como se houvesse para o nariz dele.
Disse que sim, que ele podia esculpir um busto meu. Perguntou-me, então, se eu poderia lhe ceder fotos minhas, tiradas de perfil e de frente. Respondi que não tinha as fotos. E é verdade. Fotos minhas são artigo raro, e as que existem não forneceriam a ele detalhes suficientes para o busto. O início de um silêncio constrangedor começou a se instalar. Estava claro que ele queria perguntar se poderia tirar umas fotos minhas, mas sabendo da minha aversão a retratos, hesitou. Achei graça naquilo e resolvi não prolongar a tortura, falei que ele podia tirar as tais fotos. Ele sacou de seu celular e três fotos foram feitas. Uma de frente, outra de perfil e uma última da parte posterior da cabeça.
Duas ou três semanas depois, as fotos viraram busto, saíram do achatado mundo bidimensional e ganharam corpo em 3D. O Azarão está imortalizado em argila.
E ficou bom pra caralho. Ficou bom pra carrara (valeu, JB)! Agora, só falta comprar uma estante e colocá-lo no meio de uma coleção de livros dos Grandes Pensadores. Pai, afasta de mim essa cicuta, Pai!
Eis o Azarão, cuspido e escarrado! 

Quarenta Anos, por Alexandre Garcia

sábado, 18 de agosto de 2018

Vida, Doença Autoimune

A vida,
Muitas vezes,
Dá-me ganas de me matar.
Por isso,
E só por isso,
É que ainda vale a pena
Continuar vivo.
Por pirraça,
Por implicância.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Pequeno Conto Noturno (71)

Dalila pediu a Rubens para que comprasse um assento com tampa para o vaso sanitário. Causava-lhe gelo nas nádegas ir-se direto à porcelana. 
Rubens saiu de casa - Rubens odeia sair de casa - e foi a uma dessas bodegas "tem-de-tudo-para-seu-lar", estabelecimento antigo perto de sua casa. Vizinho da dita cuja informou que fechara há uns meses. Um escritório de contabilidade no local. Rubens arremessou-se a um desses shoppings da construção - Rubens odeia shoppings mais que tudo, de qualquer tipo, um shopping da cerveja existisse, ele odiaria, um shopping da cerveja com tira-gosto de buceta no cardápio existisse, ainda ele odiaria - e comprou o assento sanitário com tampa. Não sem certa dificuldade de se lembrar da cor de sua privada, quando indagado pelo atendente, para que a tampa não destoasse. Dalila chegou e disse : - mas eu não falei que tinha de ser um assento acolchoado? Dalila nem deu o cu pra Rubens naquela noite. Mesmo assim, dia seguinte, voltou ao shopping para fazer a troca. Pagou pela diferença.
Dalila pediu a Rubens para que comprasse uns vasinhos, umas plantinhas. Arejar a sacada. Espantar o cinza da casa. Fazer parecer que ali mora gente. 
Rubens saiu de casa e arrastou-se a uma floricultura/artigos para casa e jardim. Venderam-lhe lá umas samambaias e umas avencas. Bem como os adubos, os suplementos minerais, os vasos de fibra de coco (em substituição aos antiecológicos xaxins), pratos pra suporte, correntes, parafusos, buchas e ganchos para pendurá-los. Rubens adubou os vasos, montou os pratos com as correntes, furou o teto, botou os ganchos e pendurou as plantas - Rubens odeia qualquer tipo de serviço que envolva habilidades manuais, mexer com terra, parafusar, medir, serrar, instalar. Dalila chegou e disse : - samambaias e avencas nesse sol que bate aqui à tarde? Não tem noção, não? Dalila nem deixou Rubens gozar na sua boca naquela noite. Mesmo assim, dia seguinte, Rubens na floricultura. Explicar o "clima" de sua sacada. Trocar por suculentas e cactos, rosas-do-deserto e patas-de-elefante. Não realizavam trocas, esclareceu-lhe o bichinha de avental de juta com manchas de terras cuidadosamente carimbadas para passar a impressão de um verdadeiro homem da terra. Não trocam?, arriscou-se Rubens. São seres vivos, empertigou-se a bicha, trocá-los, como se fossem mercadorias, feriria suas dignidades. Teria sido já homologado e publicado um Estatuto das Plantas Ornamentais? Rubens preferiu não provocar a bicha, não incorrer na Lei Maria da Benga. Voltou para casa com as samambaias e as avencas. Mais três suculentas, cinco cactos e uma rosa-do-deserto. A pata-de-elefante estava em falta, disse a bicha, mas que "a estariam recebendo em poucos dias". Tal escassez será por causa da caça predatória ao animal?, pensou Rubens, mas, vendo que a paciência da bicha estava no limite, preferiu não perguntar.
Dalila pediu a Rubens para que comprasse arroz integral, sementes de chia e de quinoa. Eliminar as toxinas do dia a dia. Reequilibrar as funções metabólicas. Mens sana e blá-blá-blás. Precavera-se, dessa vez, Dalila. Escreveu num papelzinho o nome da loja - Empório Alecrim -, o endereço e o nome da vendedora. Para Rubens  não ter como errar. Gostosa, a vendedora, pedidos feitos e empacotados, começou : não gostaria de também levar nosso pão caseiro/artesanal/gourmet/integral de grãos de trigo do delta do Nilo? Ou uma penca de nossas bananas-da-terra orgânicas e autossustentáveis cultivadas em assentamentos do MST por famílias que vivem em harmonia e respeito com a terra? Quem sabe nosso mel de abelhas jataí de pólen coletado exclusivamente de lavandas silvestres? Os peitos balouçantes, tamanho médio para grande, livres por debaixo da bata de algodão cru, certamente confeccionada por uma cooperativa de mulheres rendeiras do Vale do Jequitinhonha e com renda revertida para a comunidade, que Rubens adivinhava os mamilos terem o gosto de gergelim torrado, a vendedora não lhe ofereceu.
Pediu muito mais e além, Dalila. Detergente biodegradável, sabonete antibacteriano, bucha vegetal, frigideira antiaderente, travesseiros de viscoelástico, TV de led, que Rubens trocasse o rum pelo vinho, caminhadas três vezes por semana, cortinas para a sala, amaciante para as roupas, pato purific, escova de dentes com limpador de língua, abajur de cabeceira, mesa de centro, tapetes, porta-retratos, quadros para as paredes, velas perfumadas. Pediu mais e além, Dalila.
- Rubens - pediu, finalmente, Dalila -, posso cortar os cabelos do seu pau?
Rubens - que nunca fora Sansão - mandou Dalila à puta que a parira. De malas e cuias.
Pegou a garrafa de rum escondida no maleiro. Botou Hanói-Hanói pra rolar na vitrola. Casa depenada. Sozinho. Pleno.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

O Caixa 2 de Deus (Ou : Eu, o Sérgio Moro do Diabo)

O deputado boliviano Sergio Choque saiu-se com um projeto de lei para lá de herege : o parlamentar quer quebrar o sigilo bancário de Deus, auditar o livro-caixa do Senhor. Ou, pelo menos, uma vez que Deus não existe, ou não tem nem CPF (cadastro de pessoa física) nem CNPJ (cadastro nacional de pessoa Jeová), devassar a contabilidade dos autoproclamados representantes terrenos de Deus, pastores, padres e outros estelionatários da fé.
O deputado quer que os rendimentos das igrejas sejam declarado ao fisco boliviano. Tudo discriminado, tudo preto no branco, tim-tim por tim-tim, a origem dos donativos, o montante e a destinação. É a CPI do Dízimo! É a Lava Jato da Sacolinha!
Antes mesmo de ser acusado de qualquer coisa, o pastor Eloy Luján, presidente da Associação de Igrejas Cristãs Evangélicas de Cochabamba, estrilou, pôs o boca no trombone de Jericó, cantou feito galinha que acaba de botar ovo, saiu em ataque ao projeto do deputado e, ao mesmo tempo, em autodefesa, comportamento típico e padrão de quem tem culpa no cartório.
Eloy Luján disse que a aprovação de tal projeto seria um "absurdo", que um Estado declarado laico não pode exercer nenhum tipo de interferência e de ingerência nas atividades religiosas, que um Estado laico nada entende das coisas de Deus e da fé. Grande safado, esse pastor.  Nessas horas, o Estado é laico, né?
Na hora do recebimento de privilégios, nunca vi nenhum líder religioso exigir o pleno exercício do Estado laico. E são muitos, os privilégios : isenção de impostos, doação de terrenos públicos para a construção de templos, concessões de canais de rádio e tv para melhor divulgar a palavra de Deus  e atingir e garantir a tosquia de um rebanho cada vez maior, homens de algumas religiões ficam isentos do serviço militar etc etc. Todos privilégios, diga-se de passagem, indevidos, ilegais, inconstitucionais a rigor.
Agora, na hora da contrapartida, da prestação de contas de toda a dinheirama advinda dessas benesses estatais, os pilantras de Cristo dizem que as igrejas não devem qualquer tipo de satisfação a um Estado secular. Verdadeiros canalhocratas, como diria Bezerra da Silva.
A revolta do pastor chamou mais atenção para o projeto que o próprio projeto em si, que passaria despercebido em direção às gavetas dos projetos não aprovados, pois, sendo o parlamento boliviano formado por bons cristãos e homens tementes a Deus, a auditoria do livro-caixa de Deus não tem a menor chance de prosperar.
Ainda mais que o projeto obrigaria também a Igreja Católica da Bolívia a prestar conta dos recursos enviados ao Vaticano. Não consegui encontrar a porcentagem enviada nem a periodicidade do envio, mas cada paróquia católica do planeta, desde uma basílica a uma simples capela ou ermida, esteja localizada numa grande metrópole ou no cafundó do Judas, é obrigada a pagar certo quinhão do que arrecada para o Vaticano. Ou seja, cada padre tem que pagar os royalties pelo uso da marca, para manter sua franquia.
Ocorreu-me agora : esse dinheiro enviado para o Vaticano, uma vez que não declarado, não poderia ser considerado um tipo de evasão de divisas? Cada paróquia do planeta não seria possuidora, portanto, do equivalente a uma conta bancária no exterior, um caixa 2 num paraíso fiscal? É o Éden da propina!
Adorei o projeto do deputado boliviano. Estará lançada a semente de uma bancada ateia na América do Sul?
Aliás, essa situação me lembrou de uma piada.
"Três líderes religiosos - um monge budista, um padre católico e o Edir Macedo - foram entrevistados sobre a destinação que davam aos donativos arrecadados, de como era feita a partilha entre o montante que ia para as obras de Deus - ajudas assistenciais, caridade etc - e o que ia para as coisas dos homens, para as necessidades dos sacerdotes, manutenção dos templos e coisa e tal .
O monge budista, todo zen e sereno, foi o primeiro a responder : bem ao centro do templo, no chão, há uma pintura da Roda de Buda, ou Roda do Dharma, pois eu me posiciono bem ao centro da roda e lanço os donativos para o alto, o que cair dentro da roda é de Buda, o que cair fora é para as necessidades parcas e frugais dos monges e do mosteiro.
Em seguida, veio o padre católico : eu procedo de forma parecida ao colega monge, vou para perto do altar-mor da minha igreja, lanço os donativos para o alto e o que cair em cima do altar é de Deus, o que cair no chão é para o sustento das necessidades terrenas dos padres, coroinhas e seminaristas, que, estando sempre saciadas e locupletadas, nos dão mais ânimo e forças para bem continuar a obra do Senhor.
Por último, o Edir Macedo : eu também procedo de forma semelhante às dos meus colegas, vou para o centro do Templo de Salomão e jogo o dinheiro pro alto, o que Deus pegar é dele.
(em tempo : na piada original, eram um monge budista, um padre católico e um rabino, mas como publiquei recentemente duas postagens de conteúdo judaico - Sadomasoquismo Judeu e Queda do Muro das Lamentações -, antes que algum filho da puta comece a me acusar de antissemitismo, achei por bem substituir o rabino pelo Edir Macedo, a ideia é a mesma)"
Agora, se aprovado o projeto do deputado boliviano, não forem encontrados, porém, policiais dispostos a investigar, promotores dispostos a acusar e juízes dispostos a condenar, por medo de excomunhão e da danação eterna, é só o deputado Sergio Choque entrar em contato comigo aqui no Marreta. Serei, com todo prazer, júri, juiz e executor da CPI do Dízimo, da Lava Jato da Sacolinha.
Eu, o Sérgio Moro do Diabo.