A imortal Nélida Piñon, autora do indispensável e calhamaçal romance A República dos Sonhos, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, declarou, em certa feita, que não é a cabeça, mas, sim, a mão que escreve. É a mão que escreve. Se não a parafrasear, ao menos dando nova vestimenta, ou, no mínimo, anuência a uma outra declaração, esta atribuída a Einstein, que creditou o êxito de seu trabalho a 1% de inspiração e 99% de transpiração.
É a mão que escreve. Deveras. O trabalho intelectual, o matutar, o escrever, é, também e sobretudo, um trabalho físico, braçal, brutal. Escrever um bom livro, um bom ensaio, uma boa reportagem ou um bom artigo científico é tarefa para quem tem a resistência e a obstinação de um burro de carga. E de sobrecarga.
Em 2011, quando do lançamento do CD Chico, de Chico Buarque de Holanda, trabalho que interrompeu um jejum criativo de quase 13 anos do compositor - o último disco de inéditas havia sido As Cidades, de 1998 -, eu fui mais além e escrevi aqui no Marreta : É o Pau Que Escreve. Disse-o porque o hiato criativo de Chico, não coincidentemente, encerrou-se quando o compositor arrumou um novo amor. E bota novo nisso. A moça, Thais Gullin, mal contava, à época, com 30 aninhos, uma pré-balzaquiana, praticamente uma ninfeta, uma lolita, se comparada ao septuagenário cantor dos olhos de ardósia. Os eflúvios da nova xavasca inspiraram ao menestrel, ao poeta, ao bardo e ao cantor. Não é a cabeça que escreve. Nem a mão. É a cabeça do pau, embebida no tinteiro da buceta, que escreve, devo ter dito eu na ocasião.
Disse-o e volto agora a reiterá-lo. O próprio Marreta do Azarão foi escrito à força da cabeça do pau. Sejam as postagens mais virulentas, maledicentes e sardônicas, as marretadas propriamente ditas, sejam os poemas, nos quais um ou outro desavisado pode enxergar algum lirismo, sejam os pequenos contos, tudo e todos escritos pelo pau, tudo movido pelos ventos e pelos remos da testosterona, que, há 10 anos, quando comecei com o blog, ainda corria, caudaloso e perene rio, pelas minhas veias; não o fio d´água esquálido e intermitente que é hoje; não à toa, a produção caiu a olhos vistos, em quantidade e qualidade.
Tudo escrito pelo vigor e, sobremaneira, pela memória da cabeça do pau. O Marreta do Azarão bem que poderia se chamar As Memórias da Cabeça de um Pau. A exemplo mais específico e palpável do que falo, a série Pequeno Conto Noturno, que já se vai para mais de setenta episódios. Deste total, tão somente uns oito ou dez são narrativas romanceadas de experiências reais. Todos os outros foram concebidos pela releitura, pela revisita, pelo repisar das memórias da cabeça do pau. O arsenal da memória, porém, não é infinito, tampouco imperecível. Tem de ser, vez ou outra, renovado, abastecido com novas vivências. Indo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, dormindo às 20h e levantando às 5h? De que jeito?
A memória pode ser editada, remodelada, maquiada, mas não criada. Valha-me São Lavoisier!
O meu açude de memórias da cabeça do pau se esgotou. Há tempos que entrei no meu volume morto. Até tento - insisto em - evocar velhas memórias da cabeça do pau. E nada. Nem sinal de vida.
No mês passado, na postagem Tempore Mortis, comuniquei a todos os leitores da morte cerebral do Marreta. Pois agora venho vos inteirar de uma outra morte, a da memória da cabeça do pau, o Alzheimer do caralho. Morte irreversível. Definitiva. Absoluta. Agora, é só chamar o gato para jogar a terra em cima. É a podridão, meu velho. Acredito, contudo, feito um velho sentado no banco da praça dando milho aos pombos e já olhando a vida de fora, como mero espectador, e se aprazendo da missão cumprida, que produzi um bom trabalho aqui no Marreta durante essa quase década.
Aos que por aqui ainda caírem, ou por acaso, ou por azar, ou por estranha vontade própria, leiam e usem o Marreta como bem lhes convier, da melhor maneira que lhes for possível, como quem visita ruínas de antigas civilizações.