domingo, 29 de julho de 2012

A Montanha

Gosto da mitologia grega. Como mitologia em si, e só. Como um grande e incrível compêndio de lendas, deuses, semideuses, heróis, ninfas e putaria generalizada.
Nada tenho, além de um enorme asco, com o uso pretensamente intelectual que fazem dela certas áreas do chamado conhecimento humano, psicologia, filosofia, e similares e genéricos, querendo atribuir a cada personagem um modelo do comportamento humano, um arquétipo, ou qualquer outro nome que usem.
Como se o povo grego tivesse concebido seus deuses com vistas a essas picaretagens acadêmicas. Como se cada mito houvesse sido cuidadosa e propositalmente construído com função educativa, moralizadora etc. Não foram, claro que não foram.
Os deuses e mitos são construídos para explicar magicamente o que racionalmente não se consegue, e só. Como exercícios imaginativos de cientistas canastrões, todas as mitologias me interessam. A questão é que quem tem imaginação, cria; quem não, pega o que foi criado por outrem e lhe dá nova "interpretação", apropria-se quase na categoria de coautor, e passa a viver disso.
O que mais gosto na mitologia grega é que os deuses não são oniscientes e infalíveis, frequentemente um e outro humano mais esperto os enganam, fazem os deuses de idiotas. Mas deuses são deuses. Suas vinganças são malignas. Gosto muito também da parte dos castigos infligidos aos humanos, quando são pegos com a boca na botija.
Os deuses gregos são iracundos e exímios punidores. Seus castigos têm uma carga de crueldade e sadismo dos quais apenas os deuses são capazes. São de enlouquecer. E, mais uma vez, esses castigos nada carregam de função educativa e exemplar a uma humanidade indisciplinada, não são de caráter coletivo, que dirá, universal. Os castigos dos deuses são de mira certeira, são direcionados unicamente ao infeliz que aprontou alguma com eles, os castigos dos deuses são visceralmente pessoais.
O castigo dado a Sísifo é um de meus prediletos. Sísifo não foi pouca merda, não. Filho de Éolo, rei da Tessália e suposto pai de Ulisses, Sísifo simplesmente alcaguetou Zeus, quando este raptou a filha do deus dos rios, enganou e aprisionou Tanatos, e ludibriou Hades.
Foi quando Hermes decidiu acabar com a zona e infligiu a Sísifo um castigo pior do que a morte : Sísifo foi condenado para todo o sempre a empurrar uma pedra até ao cimo de um monte, caindo a pedra sempre que o topo da montanha era atingido, invariavelmente. Este processo seria repetido por toda a eternidade. Espertíssimos, os deuses. Talvez o pior castigo para um humano seja mesmo a rotina improdutiva.
Imaginemos esse castigo aplicado a algumas profissões.
O pedreiro, por exemplo, ergue uma parede durante um dia inteiro, quando volta para continuar a obra no dia seguinte, a parede não está mais lá, os tijolos estão todos soltos, como se nunca alguém os tivesse perfilado e cimentado. Dia após dia, a mesma coisa. Indefinidamente. Quanto tempo sem enlouquecer?
O médico, a outro exemplo, opera hoje o apêndice estuporado de um sujeito, extrai, faz a assepsia, costura certinho e tudo, dá alta pro cara; no dia seguinte, o mesmo sujeito aparece com o mesmo apêndice a lhe incomodar, nem sinal da cirurgia, nem uma cicatriz, e o médico tem a certeza de que tudo foi feito. Dia após dia, o mesmo apêndice a lhe assombrar. Quanto tempo antes de começar a babar verde e trocar o jaleco pela camisa de força?
Mas são impossíveis tais ocorrências, ou melhor, recorrências, certo? Com o médico e com o pedreiro sim, que são uns afortunados, cada um a seu modo.
Com o professor, no entanto, é a exata descrição de sua faina.
O professor chega, todas as manhãs, com a sala lotada e sonolenta, e ergue sua parede, seu murinho cotidiano; no dia seguinte, nada há mais lá, nem vestígio da parede à qual outra e mais outra iriam se juntando até a edificação final. Pior : não há nem mais os tijolos para ele pacientemente rejuntar.
O trabalho do professor é uma casa que não tem teto, não tem nada, não tem chão, não tem dormir na rede, não tem parede, nem penico tem ali. Mas não tem nada de muito engraçada, a labuta do professor.
O policial também, creio, vive situação semelhante, ele prende o bandido hoje e o mesmo filho da puta já está na rua amanhã.
Por que todo esse blá-blá-blá agora, domingão brabo, um crepúsculo seco, poeirento e fuliginoso? Porque amanhã o inferno está de volta, a montanha se porá mais uma vez à minha frente, intransponível.
Para minha sorte, para meus consolo, alento e sono (quase) tranquilo, Zeus, que não é tão mau assim, concedeu-me um fígado de Prometeu, a cujos poderes eu recorro diariamente, em prol de minha pouca sanidade.

sábado, 28 de julho de 2012

Às Vezes, O Curinga Vence.

Charge de Dalcio

NOTURNO

E uma luz azul, natimorta, 
Parida de uma tela, transistores e chips, 
Bombardeia sua face. 
E arremessa a imagem dela às minhas retinas, 
Menos face que disfarce: 
Lânguida 
Leucêmica 
Lívida 
Longínqua 
Lúgubre. 
Face que seria muito mais 
Sã 
Sexy 
Siciliana 
Sobeja 
Sua 
Afagada fosse por tépido clarão 
De chama de vela de sebo de carneiro.
 
Vivemos sob sóis e sofreguidões diferentes. 
Mas o pau ainda sobe 
E seu universo ainda me acolhe.      

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Liberdade Religiosa Ou Condescendência Com Burrice?

Texto de Paulo Ghiraldelli Jr.

"Conta a história das ideias que ao longo dos debates do século XVIII na França, a respeito do mundo que poderia emergir a partir do movimento do Enciclopedismo, os filósofos franceses Diderot e Voltaire conversavam sobre o futuro da religião, investigando se esta poderia ou não ser abolida. Diderot defendia uma postura radicalmente materialista. Para ele, era possível uma moral completamente laica e, portanto, não se fazia necessária a manutenção da religião. Voltaire concordava com ele, contanto que tal moral laica ficasse apenas para os intelectuais. Para as massas populares nada escolarizadas ou pouco escolarizadas, Voltaire aconselhava que os códigos ético-morais fossem ainda os religiosos. Voltaire não acreditava que as leis morais pudessem ser cumpridas pela população se elas fossem ensinadas como não vindo de entidades divinas.
Esse debate não é mais o nosso, mas vivemos, ainda, sob a esteira de seus dividendos. Uma boa parte dos intelectuais liberais mais sofisticados não possui nenhuma prática religiosa. Eles conduzem suas vidas segundo uma moral laica, em geral pragmática. São pessoas que, como eu próprio, não precisam se colocar nem como ateus e nem como crentes religiosos. São aqueles que notaram que a frase “Deus está morto”, de Nietzsche, era uma consequência natural da estocada positivista contra a busca do absoluto, ou seja, contra o que havia restado de movimento metafísico após o ataque de David Hume. Mas uma boa parte da nossa sociedade se move eticamente a partir de preceitos religiosos. Entre estes, havia até pouco tempo dois tipos de pessoas: aqueles que absorviam a ética cristã, principalmente a criada a partir da Igreja de Paulo, independentemente dela ser ou não religiosa, ou seja, sagrada; e aqueles que a absorviam a partir do que entendiam como sendo o seu caráter sagrado.  Mas, agora, há uma nova forma de entrelaçamento entre ética e religião, aquela nascida do crescimento das igrejas evangélicas entre nós e, como reação a isto, o aparecimento de correntes altamente conservadoras na Igreja Católica. Um novo tipo de brasileiro tem emergido entre nós, a partir dessa situação que passou a vingar principalmente no final dos anos oitenta.
Esse terceiro grupo de pessoas não possui nenhuma ética organizada. Eles não sabem o que é o certo e o que é errado a partir de uma relação entre suas faculdades racionais e determinados códigos éticos, laicos ou religiosos. Eles se movem por regras simples de uma pseudo-ética. E então são presas fáceis de outra pseudo-ética, a das igrejas. Essa falsa ética ou pseudo-ética, no Brasil, lhes é dada por pequenos preceitos supérfluos, criados no interior do movimento de proliferação de igrejas dos anos noventa e de agora. É onde essas pessoas um tanto perdidas encontram uma certa “comunidade” que as acolhe e lhes dá uma mínima “visão de mundo”, que lhe dá algo que parece um sentido para suas vidas mentais até então simplórias ou apenas desorganizadas.
Uma ética e uma moral se consubstanciam, no limite, em conjuntos de apontamentos sobre o que é interessante fazer e o que é inútil ou nocivo de levar adiante. Ou seja, trata-se do ethos de um povo transformado em código de conduta explícito, fácil de ser absorvido pelas crianças, relembrado pelos adultos e ensinado aos estrangeiros. Todavia, isso não pode ser aplicado pelas igrejas, uma vez que isso afastaria a população dos templos — antes somente os dos evangélicos, agora também os dos católicos. Na competição para arrecadar almas pagantes ou almas que pela presença conferem poder ao pastor (que ele pode reverter em poder político e financeiro), as igrejas perceberam que precisam criar um sistema facilitador em relação às proibições. Eis um exemplo: não se pode condenar um fiel que vende um terreno para outro fiel pelo dobro do preço que vale, pois esta é a regra geral pela qual todos vivem ali na “comunidade”, então, pode-se substituir essa proibição por uma como “não dizer palavrões”. Outro exemplo: não se pode condenar um fiel por ele não ter nenhuma piedade com um mendigo na frente da igreja, pois na comunidade ninguém pode parar a vida para cuidar dos que estão na rua (repare como os “crentes” têm ficado endurecidos de coração, como os católicos já foram acusados disso), então pode-se substituir tal condenação por uma aleatória, a de ter faltado no culto do dia X ou Y. As regras de uma conduta ético moral ligada à religião, no caso, a cristã, são substituídas por regras de cada igreja, segundo um sistema de proibições rígido, porém irracional e baseado apenas na necessidade de que se tenha, ainda, algo que é dito que “não pode”. Sobra da religião não o “pode isto e não pode aquilo”, da doutrina que, por sua vez, estaria fundada numa filosofia e numa teologia, e sim o “não pode aquilo”, mas “aquilo” é apenas algo sem sentido.
É claro que tudo isso é ajudado por outros mecanismos, principalmente o atrativo do “milagre”, da “cura imediata” ou da “salvação” que, enfim, não é a salvação contra o Mal, e sim a salvação financeira ou o desemprego ou a falta de sorte etc. Ou seja, o Mal se traduz em males da cada um, em um sentido moral bem empobrecido. O pastor promete dar ao fiel não um Deus ou um Jesus ou coisa parecida, nos cânones do cristianismo que conhecíamos antes dos anos noventa. Ele promete dar um Mágico, alguém do Além que pode ser chamado, a qualquer momento, para resolver problemas cotidianos. O azar na vida é coisa mostrada como produto de uma entidade denominada “Demônio”. A sorte pode ser restabelecida pela fé, uma fé esvaziada de religiosidade, ou seja, algo que se faz sentir a partir do pronunciamento de palavras do tipo “Sangue de Jesus tem poder”, exatamente como Mandrake poderia dizer “Abracadabra”. Isso quando não é o caso do pastor, na própria igreja transformada em picadeiro de circo, fazer uns movimentos físicos para dominar o Tinhoso! Esse tipo de prática, semelhante a um resto de neopaganismo de tipo bárbaro, agora atinge não só evangélicos, mas católicos e espíritas que começam a se sentir atraídos para o mundo da completa incapacidade de se adaptar a uma mentalidade científica. Mas se engana aquele que acredita que isso agarra somente os desescolarizados no Brasil de hoje. Há muitas pessoas nas universidades “pensando” dessa maneira.
Volto a Diderot e Voltaire. Este, quando dizia que a religião deveria ser mantida mesmo num mundo reconstruído pelo Iluminismo, imaginava que a religião cristã poderia se limitar aos cânones de sofisticação teológica que havia alcançado. Isso implicava, então, a manutenção da completa transcendência de Deus. Desse modo, Deus ou Jesus ou qualquer coisa parecida com entidades divinas, estaria em contato com os homens por meio de rituais privados, ouvindo os homens. Caso houvesse qualquer intervenção divina no mundo dos homens, tal intervenção seria “filtrada” pela alma humana que, então, ao lembrar-se dos exemplos das entidades divinas (por exemplo, a vida de Jesus ou dos santos etc.), inspiraria atos mentais, de caráter intelectual e moral. Mas não foi assim que as coisas evoluíram em nossos tempos recentes. No movimento de proliferação de igrejas dos anos noventa, e que continua agora mais forte que nunca, ninguém é “tocado” pela inspiração dessa maneira. Todos são tocados de modo mágico. Entidades tais como Deus, Jesus ou o Demônio, atacam diretamente a Terra, interferindo nas relações causais, ou seja, quebrando a ordem natural (mandando a Física, a Biologia etc às favas). O que antes se chamava de milagre — em relação ao qual a Igreja Católica criava todo um processo enorme de investigação para conceder fé — agora se tornou possível para qualquer corretor de imóveis sem registro ou vendedor de carnê do Baú, que pode colocar um terno surrado e virar pastor ao carregar embaixo do braço um negócio que ele chama de Bíblia. E os “abracadabras” correm o país. Não há nada menos religioso que isso. Mas é isto que domina a juventude brasileira e, pasmem, já domina também boa parte de nosso professorado na escola básica.
Nós não vamos tornar o Brasil um bom lugar de viver deixando nossas crianças nas mãos desse tipo de gente, com essa mentalidade. Estamos dando diplomas de professores, na universidade pública, para pessoas que não pensam de maneira racional. Elas são cativas dessas igrejas. Logo teremos uma mentalidade mística em cargos importantes da República. Gente incapaz de entender como funciona mecanismos de inflação ou como que é possível evitar a dengue. Será difícil fazer do país uma grande nação com esse tipo de mão de obra, completamente imbecilizada. Estamos confundindo liberdade religiosa com condescendência à burrice. Temo que paguemos todos, de modo drástico, por esse nosso descuido. Esse descuido de nossas universidades para com a evolução da barbárie embaixo de nossos narizes."

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Contra Fatos...

Deus não deveria ser blindagem suficiente para o Papa?
Site : Psycholoco

Eu, Extinto Farol De Alexandria

Quando partes,
Uma esquadra de estrofes à vela
Me arrebenta o tórax
E zarpa em viagem contigo.
A te fazer escolta contra as lulas gigantes,
Contra os abismos desse nosso mundo não-esférico.

Quando voltas,
Vens perfumada com a essência da rosa dos ventos,
Trazes médicos persas para me curar,
Uma bússola de bronze para o meu peito,
Especiarias, anilinas lunares
E panapanás sob suas saias.

Há muito te foste,
E a te seguir
Foram meu céu de anis-estrelado,
Minha garrafa de absinto com meu gênio a habitá-la
E meu travesseiro de penas de fênix
(Minhas coisas preferem a ti. Pudera...já que são partes de mim.
A parte que podes levar contigo).

Não há notícias do teu retorno.
Vago pela orla pedregosa de um mar gelado sem vagas,
Firo meus pés no cascalho em lascas.
Eviscerado, toco uma desafinada harpa em minhas costelas.
Estou sem rimas para te ventar de volta,
Sem querosene nem óleo de baleia para me incendiar,
Fazer-me em teu farol.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Tupã Que Se Foda (Ou : Os Silvícolas de Cristo)

Dados do Censo Demográfico de 2010 revelaram que 25% dos índios brasileiros são evangélicos, predominantemente ligados à Assembleia de Deus.
A grande mídia veiculou a informação do IBGE com um tom de espanto, quase de estupefação. Não vejo razão.
Primeiro que o índio brasileiro, óbvio, é brasileiro, e o crescimento de evangélicos entre eles é proporcional ao de outros grupos da população. Desgraçadamente.
Segundo, e o principal, que não é de hoje que o índio não é mais índio.
“Ê ê ê ê / índio quer apito / se não der / pau vai comer...", já cantava a marchinha carnavalesca de Haroldo Lobo, em 1961. Mas a coisa é muito anterior aos áureos tempos de nosso carnaval.
O índio não é mais índio, precisamente, desde que Cabral aportou por essas plagas, em portos seguros. E não deixou de ser índio por força de um conquistador melhor armado. Nada disso. Deixou de ser índio porque quis. Planejadamente, eu até diria.
As tribos que receberam amigavelmente a esquadra de Cabral, não o fizeram por serem os tais "bons selvagens". Assim procederam por interesse. Puro interesse.
O índio ficou atônito e embasbacado com aquele povo estranho, e mais ainda com toda a tecnologia que ele trazia. Vale sempre lembrar que, à época do descobrimento, o índio brasileiro não conhecia sequer a roda.
O índio, que não é bobo nem nada, passou a desejar tudo aquilo para si. E o que é melhor : tudo já pronto e acabado, sem que ele precisasse dispender os menores esforços físicos ou mentais na confecção daquelas maravilhas.
Pode parecer exagerada a maneira como digo, mas não é. O conhecimento trazido pelo europeu era muito mais superior à cultura indígena do que qualquer tecnologia que algum ET, por ventura, possa nos trazer. Nós, pelo menos, conseguimos conceber a ideia de um ET, de civilizações extraplanetárias superiores à nossa. O índio, nem isso.
A chegada das caravelas, para o índio, foi um evento muito mais espantoso do que seria um desembarque alienígena hoje.
Diferente, porém, do homem civilizado - o que só mais evidencia que ele não tinha nada de puro ou ingênuo -, o índio não entrou em pânico, como aconteceria com a maioria das pessoas de uma grande cidade atual à visão do pouso de gigantescas naves-mãe.
Antes pelo contrário, o índio foi de encontro ao invasor, foi confraternizar, brasileiro é muito bonzinho (já dizia uma Kate Lira muito da gostosa) : queria as caravelas, as roupas, as armas e as ferramentas para ele - e também o apito, que ninguém é de ferro.
E como conseguir isso? Atacando e afugentando os recém chegados? Seria espantar a sorte, rasgar o bilhete premiado. Por isso, o índio tão bem recebeu o português. Por isso, ofertou-lhe sua madeira, seu ouro, suas mulheres para a miscigenação.
Em nenhuma outra situação conquistado-conquistador de que se tenha notícia, a miscigenação se deu de forma tão intensa e voluntária quanto no Brasil, nunca a putaria foi tão grande. Cabral foi o precursor do turismo sexual.
O índio, verdadeiramente, canibalizou o português, queria tudo daquele povo prodigioso, até o DNA, embora não soubesse disso. Até porque o europeu lhe pedia muito pouca coisa em troca, umas árvores, umas pedrinhas que de nada valiam ao índio, e que passassem a adorar e a rezar para o deus deles, o deus cristão.
O descobrimento do Brasil foi um negocião da China. Para o índio.
Grande merda trocar Tupã por Cristo. O índio não foi coagido à fé cristã, tampouco se sentiu vilipendiado em abraçá-la. O que Tupã dava aos índios, além de uns raios sobre suas cabeças quando estava furioso e de umas índias de peitos murchos?
O deus dos brancos, por outro lado, dava tudo aquilo que o índio estava vendo e mal acreditando. Até eu teria trocado tranquilamente de deus, se fosse um índio naquela época. Sem traumas.
Nada mudou de lá para cá. O índio não desenvolveu nenhum tipo de conhecimento ou tecnologia, continua de olho grande em tudo o que o civilizado cria, e continua obtendo tudo de mão beijada, fazendo-se de primitivo, de retardado cordial, de vítima.
Hoje, alguns caciques circulam por suas reservas a bordo de caminhonetes importadas e são grandes traficantes de madeira, pedras preciosas e animais silvestres. O índio comum, digamos assim, usa chinelos havaianas, calção de nylon da Adidas, relógio Orient no pulso e camisa da seleção com o nome do Ronaldo nas costas.
Por que o espanto, então, dele se converter à fé cristã evangélica, em formar os silvícolas de Cristo? Cristo faz parte do pacote, é só mais um item de consumo. Assim como andar com a bíblia embaixo do braço, o famoso desodorante de crente.
Para manter a farsa - e a mamata -, o índio, junto com o calção Adidas etc, anda com uns colares de sementes, que podem ser comprados em feiras de artesanato hippie,  e com cocares que podem ser encontrados em qualquer lojinha de artigos para carnaval.
Aliás, tenho quase certeza de que o próprio índio compra seus cocares nessas lojas. Um dia desses, vi a foto de um índio que participava de um protesto lá do tal do Rio +20, ele ostentava um cocar em que havia uma pena cor-de-rosa-choque. Alguém tem notícia de alguma arara ou papagaio rosa-choque? E fosforescente ainda por cima?
Que durmam tranquilos os historiadores, antropólogos e outros que tais. Nesse caso, o cristianismo não irá obliterar, desvirtuar ou destruir nenhuma cultura. Nunca houve grande coisa a ser. E o pouco que talvez tenha havido, o índio dá graças a deus - não a Tupã - de tê-la barganhado pela do homem branco, há mais de 500 anos.
E o dízimo? Como será pago? Madeira, minérios, papagaios ? Sim, com toda a certeza.
Per saecula saeculorum. Amem.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Carta Para Tito

Recebi este texto por e-mail, e ele seria a célebre carta deixada pelo imperador Vespasiano (41 dC) a seu filho Tito (79 dC). Nela, o pai deixa uma espécie de testamento político ao filho, o "caminho das pedras" para contentar o povão e deixá-lo sempre sob controle.
Governantes utilizam os conselhos de Vespasiano até hoje, logrando o mesmo êxito da época do império romano, se não maior ainda. Isso porque o ser humano não muda, é (e será) o mesmo idiota de sempre. E que venha a Copa do Mundo 2014.
Em tempo : clunis, do latim, significa nádegas, o famoso bundão.
A carta :
22 de junho de 79 d.C.
"Tito, meu filho, estou morrendo. Logo eu serei pó e tu, imperador. Espero que os deuses te ajudem nesta árdua tarefa, afastando as tempestades e os inimigos, acalmando os vulcões e os jornalistas. De minha parte, só o que posso fazer é dar-te um conselho: não pare a construção do Colosseum. Em menos de um ano ele ficará pronto, dando-te muitas alegrias e infinita memória.
Alguns senadores o criticam, dizendo que deveríamos investir em esgotos e escolas. Não dê ouvidos a esses poucos. Pensa: onde o povo prefere pousar seu clunis: numa privada, num banco de escola ou num estádio? Num estádio, é claro.
Será uma imensa propaganda para ti. Ele ficará no coração de Roma por omnia saecula saeculorum, e sempre que o olharem dirão: 'Estás vendo este colosso? Foi Vespasiano quem o começou e Tito quem o inaugurou'.
Outra vantagem do Colosseum: ao erguê-lo, teremos repassado dinheiro público aos nossos amigos construtores, que tanto nos ajudam nos momentos de precisão.
Moralistas e loucos dirão que mais certo seria reformar as velhas arenas. Mas todos sabem que é melhor usar roupas novas que remendadas. Vel caeco appareat (Até um cego vê isso).
Portanto deves construir esse estádio em Roma. 

Enfim, meu filho, desejo-te sorte e deixo-te uma frase: Ad captandum vulgus, panem et circenses (Para seduzir o povo, pão e circo).
Esperarei por ti ao lado de Júpiter."
 
PS: Vespasiano morreu no dia seguinte à carta. Tito não inaugurou o Coliseu com um jogo de Copa, mas com cem dias de festa. Tanto o pai quanto o filho foram deificados pelo senado romano.

Clark Crente

É um pássaro? É um avião? Não!!! É o Clark Crente!!!
Puta que o pariu! Muito boa essa sacada de um candidato a candidato de vereador da capital paranaense.
A princípio, confesso que achei genial. Ri um bocado. Muito mais criativo e espirituoso do que a maioria dos nomes esdrúxulos que costumam infestar as eleições de nossa amada democracia, sobretudo as municipais (vide a exemplo o Xota Oi Meu Bem, na barra lateral de "bugigangas" do blog).
Ri um bocado. Mas meu riso dura pouco
Acontece que o rapaz com cara de bocó ao lado não é um kryptoniano abnegado, criado por honestos fazendeiros do Kansas, disposto a usar seu vastos poderes em bem da humanidade. Aliás, só mesmo não tendo a natureza humana para alguém com os poderes de um semideus pensar em ajudar ao próximo, mas isso já é outra conversa, concentremo-nos em Clark Crente.
O rapaz com cara de paçoca faz parte de um dos grupos humanos mais desprezíveis que já surgiram no planeta, os cristãos; dentre os cristãos, da ala mais ignorante e intolerante da atualidade, os evangélicos neopentecostais, as crias de Edir Macedo.
Clark Crente (alter ego de Ewerson Alves da Silva) nem é propriamente candidato a vereador, ele é o primeiro suplente das 28 vagas abertas, e já preenchidas, pelo PDT. Havendo alguma desistência, Clark entra em cena.
Toda eleição elege seu palhaço, esta não podia fugir à regra. O nome e as fotos de Clark Crente começaram a circular pela internet, viraram um desses fenômenos instantâneos das redes sociais. 
O PDT tem até o dia 6 de agosto para definir suas chapas. Com a superpopularidade recém adquirida de Clark Crente, parece-me óbvio que o partido vá forçar a desistência de alguém para que Clark se torne candidato oficial.
Surpreso com a popularidade, Clark Crente afirma agora que a decisão sobre sua entrada no pleito de 2012 “está nas mãos de Deus”. Nas mãos de deus, ou de alguém tão poderoso quanto ele, o Superman.
Por trás da cara de sonso e de lavado cerebral que todo evangélico tem, e de uma brincadeira aparentemente inocente, há o perigo muito grande do aumento exponencial das bancadas evangélicas na política.
Essa raça escrota quer transformar o país numa teocracia, ou numa jesuscracia, só falam em jesus, os filhos das putas.
Clark Crente, coincidência ou não, é do estado do Paraná, o mesmo da cidade de Apucarana, que tentou, mês passado, fazer passar uma lei municipal que obrigava alunos e professores de escolas públicas a rezarem o pai nosso ao início de todos os dias letivos.
Se essas porras dos evangélicos continuarem a se alastrar na política, não demora muito e teremos um presidente da república evangélico, vide a abjeta figura de Marina Silva. Se um desses evangélicos chega à presidência, o dízimo passa a ser imposto obrigatório, descontado na folha de pagamento.
É urgente alguma medida que barre a candidatura (e posterior legislatura) de pessoas que tenham, declaradamente, o rabo preso àlguma religião.
É urgente que se vá ao Kansas, que se marque uma audiência com Lex Luthor, que se obtenha dele, ao preço que for, um bom pedaço da boa e velha kryptonita.
Neutralizemos Clark Crente. Enfiemos um tarugo de kryptonita no seu cu. E no de todos os crentes, que, é sabido, são do cu quente.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Dando Milho Aos Pombos

"E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar.
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar"
(Gente Humilde - Garoto/Vinícius de Moraes/Chico Buarque)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O Dia Do Rock No Paulistânia Rock Bar

Ribeirão Preto é dita uma cidade próspera; economicamente, pode até ser. Porém, em termos de lazer, atividades culturais, espaços diversificados, é simplesmente uma cidade nojenta. Nojenta é a mais exata palavra, sem exageros. 
Tudo nessa merda é tal da balada, que nunca entendi muito bem o que seja, mas que me parece ser um termo genérico para a bagunça, para a descerebração, para a putaria. E tem que ser genérico mesmo, pois os frequentadores da tal balada não conseguiriam memorizar mais de uma palavra que designasse suas preferências hediondas.
Tudo por aqui é a porra do sertanejo universitário, tudo por aqui é o tal do rodeio, é a promiscuidade e a bebedeira tornada em tradição.
Quase tudo...
Há um pequeno espaço na cidade que resiste há mais de uma década à burrice ribeirão-pretana. Há mais de uma década (talvez quase contabilizando duas) que ele está no mesmo lugar, exibindo o mesmo tipo de programação, sem nunca ter alterado a natureza de suas atividades na busca de mais frequentadores.
É o Paulistânia Rock Bar! O único bar de rock de Ribeirão Preto. Existem outros bares na cidade que tocam rock, mas só o Paulistânia é um bar de rock. É muito diferente um bar tocar rock e ser verdadeiramente um bar de rock. Em Ribeirão Preto, só o Paulistânia.
Durvalzinho, seu proprietário, ex-fotógrafo do Notícias Populares, é o homem do rock em Ribeirão. Durval não anda com roupas pretas, cintos e braceletes de pregos, nem fica fazendo sinal do demônio com os dedos à guisa de cumprimento, que tudo isso é firula, é fake, é rock de boutique, é viadagem.
Não obstante, Durval tem o verdadeiro espírito combativo do rock'n'roll. Já presenciei muitas noites de baixíssima frequência no Paulistânia. Noites que pareciam ser definitivamente as últimas. Noites que teriam levado qualquer outro a fechar suas portas, qualquer outro a desistir de manter o negócio funcionando por mais um dia que fosse.
Mas não o Durval. O Durval é o cara! 
Não esperem dele tratamento diferenciado : você não está num restaurante francês, está no Paulistânia; não esperem dele sorrisinhos fáceis : você não está na porra de uma micareta, está no Paulistânia; não esperem dele nenhuma simpatia : Durval não vende telefones celulares, Durval vende rock'n'roll. Do mais puro, ilibado e legítimo
Nunca outro tipo de música pisou o solo sagrado do Paulistânia!
Hoje, o dia do rock será muito bem comemorado no Paulistânia Rock Bar. Serão três bandas tocando a partir das 23 horas. Velhus Tempus, Superumanos e o Oráculo do Seixas. Tudo pelo precinho de 10 reais a entrada. E a cerveja lá dentro também é barata, tem que ser! Cerveja cara não é rock'n'roll, bar que serve cervejinha importada e se diz de rock, não é de rock, é de GLS.
Parabéns pelas resistência e persistência, Durval. 
Longa vida ao rock'n'roll! Longa vida ao Paulistânia Rock Bar!
O Paulistânia Rock Bar fica à rua Daniel Kujawski, 193, no Jardim Paulista.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Matéria Escura

Enquanto sobreviver
A memória do que fui,
Eu estarei por aqui.
Por isso, escrevo,
Todos os dias,
Para abrasá-la,
Para me ancorar em mim.

Quando as vistas e as mãos
Fraquejarem
Impedindo o registro de mim,
Estarei morto de vez
(e elas já começam a dar sinais claros de cansaço, mais de tédio, até).

Ao corpo,
Que anda, respira, tem febre e caga,
Não desperdicem grandes cerimônias.
Uma vala comum qualquer está de boa medida
(a parte que me cabe neste latifúndio).

Aos meus escritos - meu verdadeiro arcabouço -,
Destinem ritos e pompas,
Cremem-os solenemente.
Não poupem da combustão
Única folha ou linha.

E esses meus restos,
Semeiem num brejo, num charco
Sem lúmen nem clorofila,
Sem a menor chance de germinação;

Essa minha fuligem,
Assoprem num pântano umbroso,
Que dos holofotes das estrelas
Não quero nem o pó.

*a parte que te cabe neste latifúndio é um verso da obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto
**foi noticiado esta semana que o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez está com demência senil.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Pai Nosso Que Estais Nos Céus, Mas Não Nas Escolas (Ainda Bem)

Em Apucarana, estado do Paraná, desde o mês passado, está a se desenrolar uma novela que jamais teria sequer se iniciado em qualquer país minimamente civilizado e respeitoso às suas leis.
A Câmara Municipal de Apucarana aprovou por unanimidade o projeto de lei que obriga os 58.000 estudantes das escolas públicas e privadas a rezarem o pai-nosso todos os dias, no início da primeira aula.
Como um órgão legislativo aprova uma lei ilegal? Quando é que esses merdas de cristãos vão entender que moram num estado laico, num estado em que deus está fora da res publica? Aqui no Brasil - pelo menos assim deveria ser -, se deus quiser se adentrar em algum órgão ou repartição pública, ele tem que bater na porta e pedir licença.
O projeto é do vereador José Airton Araújo, do PR, que atende pelo nome de Deco do Cachorro Quente (a democracia é mesmo uma merda). O vereador é evangélico, praticamente desnecessário dizer.
Sua "nobre" intenção é fazer com que as pessoas se voltem para deus nesses "tempos de violência e desesperança"(e de preferência que as pessoas procurem esse deus na igreja frequentada por ele, a Assembleia de Deus). Para o mesmo deus que promoveu genocídios fabulosos no Velho Testamento, e em nome do qual se matou e se mata até hoje? Só pode estar de sacanagem.
A ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) entrou com recurso junto ao Ministério Público contra esse estupro da Constituição.
No dia 6 de julho, o Ministério Público alertou à Câmara de Apucarana da inconstitucionalidade do projeto Pai-Nosso. Caso os vereadores insistissem, em uma segunda discussão, em manter a aprovação, o Ministério Público providenciaria o ajuizamento de uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade).
Não deu outra, em uma segunda votação, ocorrida anteontem, dia 9, a cristãozada arregou, acovardou-se, voltou aos seus subterrâneos e catacumbas, não renegando a origem. Por sete votos contra dois, o projeto do Pai-Nosso foi rejeitado.
Mas Deco do Cachorro Quente não desiste : “Eu achava que a aprovação ia ser tranquila", disse. "Agora pretendo achar outra maneira [de fazer a oração virar lei]"
Só desse cara dar tal declaração, já deveria ter seu mandato cassado.
A escola é um espaço plural, multicultural (ou multiacultural), pessoas de todos os tipos, de todas as religiões - e com as mais variadas intenções de ali estar -, ocupam os bancos escolares.
Abomino esses termos, pluralidade, multicultural etc, mas já que, desgraçadamente, assim o é, a laicidade é o caminho mais lógico em meio ao caos. Num ambiente tão "descosturado" não tem como impor a merda de uma oração.
E já que querem fazer leis que obriguem a algo dentro das escolas, que as façam para que os pais voltem a ter responsabilidades sobre os filhos, que as façam para que o estudante seja obrigado a estudar e ter disciplina.
Esses cristãos, sobretudo os evangélicos, deviam construir escolas que julguem adequadas aos seus filhos. Elas até já existem. Mas não são gratuitas, lógico.
Na verdade, nem a pública é gratuita, ela é paga, e muito bem paga, pelo dinheiro de nossos impostos. Os cristãos deveriam exigir de suas igrejas a construção de escolas cristãs.
As ovelhinhas deveriam se dirigir aos seus pastores e exigir que esses destinassem parte do dízimo para a manutenção dessas instituições. Uma porcentagem do dízimo recebido (talvez um dízimo do dízimo) seria direcionada à construção de escolas para o rebanho. Lá, na escola do Senhor Jesus, eles poderiam rezar à vontade, sem encher o saco de ninguém.
Mas é claro que não vai dar, né? Os pastores, aos moldes de nossos políticos, também só querem enriquecer às custas do idiota.
Caso idêntico ocorreu em Ilhéus (BA), em março deste ano, também um vereador evangélico impôs o Pai-Nosso aos estudantes e professores da cidade. O Ministério Público colocou o picareta em seu devido lugar.
E já que estamos no ambiente escolar, que essas duas ações do MP sejam exemplares e didáticas para todos os outros crentes-do-cu-quente espalhados pelas bancadas legislativas do país.
Fonte : Paulopes

terça-feira, 10 de julho de 2012

Uma Elegia À Cláudia Ohana (5)

"Índia, seus cabelos nos ombros caídos,
Negros como a noite que não tem luar;
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar."

O Letreiro Luminoso Do Bradesco

Não tendo como assegurar 40 anos de sua existência, estimarei aqui 30 anos; e mesmo sabendo-a aquém da realidade, a essa estimativa me apegarei. O que sei é que não tenho recordações de um tempo em que um letreiro luminoso do Bradesco não encimasse um dos principais prédios do alto da cidade; do que me recordo, ele sempre esteve lá.
Era um letreiro de neon formado por lâmpadas dispostas verticalmente e que iam se acendendo uma a uma, sequencialmente, a formar o nome Bradesco, depois se apagavam e voltavam a acender, alternando com a informação da hora, de novo o nome do banco e, por fim, com a temperatura.
O neon ia e voltava, feito uma cortina. A cortina ia e o nome Bradesco surgia vermelho, ela voltava e as horas eram estampadas para quem delas necessitasse (muitas vezes, em minhas andanças noturnas a esmo, vali-me de sua precisão), ia de novo e o nome Bradesco ressurgia em mercúrio luminescente, voltava e os graus Celsius eram grafitados nos céus. Esse cerrar e descerrar de cortinas se estendia das 18 horas às 6 horas do dia seguinte.
Há seis anos, já alijado de minhas andanças pela madrugada, mudei-me para um apartamento de cuja sacada tenho ampla vista do centro da cidade, e ao citado letreiro.
Ainda que já não me arriscasse nas horas escuras, ele me foi de grande companhia. Luzes da casa apagadas, eu me sentava à sacada (ou no telhado do prédio), fazia umas palavras cruzadas, tomava uns goles, olhava, e ele estava lá, a dizer das horas; levantava-me, ia ao banheiro, beliscava um tira-gosto, tomava uns goles, olhava, e ele estava lá, a informar da temperatura; escrevia alguma coisa, ouvia um Adoniran, tomava uns goles, olhava, e ele estava lá.
Quando eu saía para o trabalho, praticamente de madrugada, era através dele que eu sabia, sobretudo no inverno, dos rigores do clima que iria encarar; até 8 graus Celsius, dispensava tranquilamente o uso de agasalho, abaixo disso, sabia da dura peleja com Ymir ao longo de meu caminho. Como saber agora? Usar apenas meus sentidos como referência, meu corpo como instrumento térmico? Definitivamente não. Meu corpo já não é confiável, há tempos que não.
Agora, coisa de um mês para cá, o letreiro sumiu, foi retirado do topo do clássico edifício. Ninguém sabe informar do ocorrido, rescisão de contrato com o banco, retirada para posterior volta de um modelo mais novo, com design mais moderno...ninguém sabe.
Era uma conversa, entre mim e ele, admito, um tanto quanto monótona, monotemática. Porém, em nada diferente de qualquer outro diálogo que eu pudesse ter com algum outro bêbado num botequim.
Força do hábito, saio à sacada e ainda miro em sua direção. Só há uma ausência no horizonte. Mas é isso mesmo, com o tempo, nosso horizonte começa a se compor de ausências.

sábado, 7 de julho de 2012

Odair José - A Praça Tiradentes

 O rei do zonão, o Bob Dylan brasileiro, o tesão das empregadas domésticas, o bardo da Praça
Tiradentes. Odair José é figura singularíssima da MPB. Dele, nunca se tem a certeza se é aquele cara profundo que optou pelo simples, ou se é aquele cara simplório que se veste de cult.
E é em referência e justa homenagem à Praça Tiradentes, reduto carioca de boêmios, cafetões, prostitutas, travestis, policiais corruptos, cornos e, lógico, cantores de MPB, que Odair José lançou o CD "Odair José - Praça Tiradentes", todo de músicas inéditas.
No CD, Odair José revisita o universo bem brasileiro (talvez mundial) da putada e, consequente e fundamentalmente, do corno, do chifrudo feliz e conformado.
Não há nada de novo no novo CD de Odair José. Ainda bem. Odair José tem a inteligência de continuar a ser Odair José, de saber que é um produto comercial, de oferecer a seu público o que seu público quer ouvir.
O disco é do caralho. A temática é sempre a cornagem, a submissão pelo amor, o brega assumido e escancarado.
O novo projeto teve apoio de Zeca Baleiro, e é de Zeca e Odair um dos pontos altos do CD, a corníssima E Depois Volte Pra Mim.
E Depois, Volte Pra Mim
(Odair José/Zeca Baleiro)
Quando eu a conheci,
Num programa de tv, 
Ela se aproximou e falou, muito prazer, 
Por seu riso de menina, me apaixonei no ato, 
Fiquei tonto, sem razão, me encantei com seu teatro.
Os amigos me falavam, mas a ficha não caia, 
Fiquei perdido de amor, 
Todos viam o que eu nao via.

Pra todo mundo, ela diz que é modelo e atriz, 
Mas hoje eu sei na verdade o que ela faz, 
Quando me telefona pra dizer que não vem mais. 
Pra todo mundo ela diz que é modelo e atriz, 
Mas hoje eu sei na verdade o que ela faz, 
Quando me telefona pra dizer que não vem mais

Não precisa mais mentir, 
Quero você mesmo assim, 
Diga que me ama, 
Vá fazer o seu programa 
E depois volte pra mim.
Não precisa mais mentir, 
Quero voce mesmo assim, 
Diga que me ama, 
Vá fazer o seu programa 
E depois volte pra mim.

Destaques ainda para as Aconteceu, Como Um filme e Antigos Vícios. O disco é inteiro bom. Para baixá-lo, basta dar uma clicadinha aqui, no meu poderoso MARRETÃO 

O Mal Que Faz Ler "Os Pensadores" (Ou : A Armadilha Em Que Caíram Guilherme Arantes e Lobão)

Tenho uma caixa plástica retangular em que disponho meus CDs de músicas que vou baixando e gravando da internet. Contabilizo quase 150 CDs e, gravados no formato mp3 que são, cada um deles abriga cerca de 10 álbuns dos mais diversos artistas. Tudo MPB, sou xenófobo xiita no que diz respeito à música; exceções feitas ao Sinatra e ao The Doors. Mantenho uma lista detalhada de minha coleção na qual relaciono o número do CD com o conteúdo ali gravado.
Às vezes, no entanto, dou uma de periquito de realejo, corro os dedos pelos CDs e pinço um, ao acaso. Também ao acaso, aperto o botão "aleatório" do toca-CD e deixo tocar o que sair.
Ontem, dei de cara com o belíssimo álbum Guilherme Arantes (1976), com a clássica Meu Mundo e Nada Mais. Guilherme Arantes produziu grandes discos entre os meados das décadas de 70 e 80. Além do já citado, Ronda Noturna e Coração Paulista são raras peças da música popular.
São discos que retratam ainda a São Paulo da garoa, não a garoa branca e fresca, aquela do Adoniran e seus Demônios, já uma garoa cinzenta, misturada à poluição, um tanto aflitiva e asfixiante, o que coaduna muito bem com as incertezas de um jovem tímido, como Guilherme Arantes diz ter sido, e como eu sou até hoje, tirando o jovem, óbvio.
Os primeiros discos de Guilherme Arantes têm - ao menos para mim - uma atmosfera de uma aflição saudável, uma aflição que induz ao pensamento, ou que é causada por ele. Tanto faz.
Aí, a partir de 1983, processo que atingiu o ápice em 1985, começa a acontecer com Guilherme Arantes o que de melhor (financeiramente) e o que de pior (criativamente) pode suceder a um compositor : o sucesso em âmbito nacional. Com suas Cheia de Charme, Olhos Vermelhos e Gaivotas, Guilherme tornou-se praticamente uma unanimidade.
Todas as rádios o tocavam, todos queriam ouví-lo, todos queriam vê-lo, todos os programas de TV o mostravam. Quando isso acontece, quase que invariavelmente, o cara pensa, agora sim, agora eu sou um artista, agora eu sou grande, agora eu tenho um compromisso para com meu público. O cara começa a se levar a sério. Levar-se a sério é a ruína para quem desenvolve qualquer atividade criativa. A autocensura passa a imperar.
Lembro de Guilherme Arantes, ao fim dos trabalhos do disco Guilherme Arantes (1987), com a inspirada Um Dia, Um Adeus, dizer a um entrevistador que iria se recolher durante um tempo, precisava descansar da exaustiva exposição, dar uma poupada em sua figura, e também queria melhor elaborar seu próximo trabalho.
Lembro dele falando que, para aprimorar suas letras, iria começar a ler mais, leria os pensadores, e se referiu aos filósofos existencialistas como sua nova fonte de inspiração. Aqui são necessários dois parênteses :
Parênteses 1 : Ler os pensadores para quê? Ler os tais pensadores (nunca os li) pode até ser muito bom...para quen não sabe pensar. Para quem já tem uma certa intimidade com o processo, a leitura dos pensadores pode ser extremamente nociva. Com pretensões a um trabalho mais "sério e consistente", cai-se na armadilha de querer mimetizar as ideias desse ou daqueloutro pensador, corre-se o sério risco de perder a linha do pensamento individual, o que é fatal para qualquer autor. Ninguém tem que ficar pensando o que já foi pensado, ou, pelo menos, não da mesma maneira, não nos mesmos termos.
Parênteses 2 : Nunca entendi essa merda de pensadores "existencialistas". Todo mundo é existencialista. Salvo os suicidas. O resto é conversa pra boi dormir, é farsa, é embuste.
Fim dos parênteses.
O fato é que, a partir disso, Guilherme Arantes nunca mais entabulou um grande sucesso. E não porque suas letras tenham perdido a qualidade. Elas continuaram lá, bem feitinhas, bem elaboradas. Com um único pormenor : não era mais o Guilherme Arantes. E era do Guilherme Arantes que o público gostava. Não era do Proust etc.
O Guilherme Arantes se desconstruiu, parou de pensar como o Guilherme para tentar pensar como o Proust. Como se pensar como o Proust fosse melhor que pensar como o Guilherme. Talvez seja, talvez não, mas essa nem é a questão. A questão é que só Proust é Proust, só Proust pensa como Proust, só Rousseau como Rosseau, só Foucault como Foucault, só Descartes como Descartes...
E só o Guilherme como Guilherme. Guilherme abandonou Guilherme, e não se tornou Proust. Se fudeu.
Paralelo a isso, estou lendo a autobiografia do Lobão, 50 anos a Mil, em que ele, após o término de seu sexto disco, O Inferno É Fogo, cai na mesma esparrela. Ele conta que sentia a necessidade de um trabalho mais consistente e, para isso, decidiu ler quatro vezes mais que o de costume, que já não era pouco. Passou a ler muito o superestimado Nietzsche.
O mesmo se deu com Lobão. Sumiu o pensamento lobônico, ficou no lugar um arremedo de pensamento, uma série de citações até que bem costuradas na forma de letras de música. Mas sumiu o Lobão.
O que esses caras não entendem é que o pensamento de cada um é construído de forma muito peculiar e individual, por tudo o que o cara leu durante a vida, por tudo o que ele viveu, sofreu, sorriu, sacaneou, foi sacaneado.
 O pensamento se constrói como pano de fundo a tudo isso, como consequência. Não dá para parar e dizer : agora vou ler fulano para construir meu pensamento. Pensamento não é profissão, não se ensina, tampouco se direciona. Não há cursos técnicos para pensamento, nem autocads, não se compra em livrarias, não é sabão em pó nem sucrilhos.
Por mais paradoxal que possa parecer, o pensamento se constrói de forma inconsciente; não dá para racionalizar a construção do pensamento.
Lobão, também, nunca mais emplacou um grande sucesso. Suas letras ficaram mais profundas, mais elaboradas? Ouvi alguns álbuns recentes dele e acho até que ficaram. Mas sumiu o Lobão. E era o Lobão quem interessava a quem comprava os discos do Lobão, não era Nietzsch ou qualquer outro alemão de merda.
Por isso, repito : só deve ler os tais pensadores quem não sabe pensar.
E mais : fujam, corram com botas de sete léguas, com pó de pirlimpimpim, distanciem-se em warp 10, das pessoas que leem os pensadores, que os citam como fosse sua própria vida. São perigosíssimas. Falsas como o pensamento que tentam reproduzir.
Tudo isso que eu, confusamente, tentei falar, o Raul Seixas disse de forma brilhante e sucinta, que o sucinto é dom apenas dos gênios, na letra de sua canção Todo Mundo Explica : antes de ler o livro que o guru lhe deu, você tem escrever o seu.
E é isso mesmo. Ler os filósofos pensadores nada mais é que autoajuda para os não-pensantes.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O Menino E O Sabiá

O menino,
Com dois ou três anos de idade,
Corre pelo pavimento coberto de folhas secas
Da praça malcuidada.
Desabala atrás de um sabiá-do-peito-amarelo,
Que corre em fuga,
Corre mais veloz que o menino
E, como se não bastasse, voa!
O menino grita, ri, exulta, frustra-se,
Surpreso, assustado, maravilhado.

O sabiazinho pousa mais adiante
E a cena se repete.
Se repete, se repete, se repete...
Foge das mãos do menino
O que, na verdade,
Nunca esteve ao seu alcance.

Em breve, serão as bucetas;
Não tarda, a própria vida.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Arqueira Traz Em Si Um Belo Alvo

"Não sei se é caça ou caçadora
Se é Diana ou Afrodite
Ou se é Brigite, Stephanie de Mônaco,
Aqui estou, inteiro ao seu dispor"

(Olhar 43 - RPM)

O Tempo É A Madrugada

Não é a falta de tempo
Que me impede de ser um gênio.
O que me impede de ser um gênio,
É não ser um gênio.
Mas a falta de tempo
Me impede de tentar, de brincar de ser
De me transverberar, de quebrar a cara
De supor.

O tempo não é a quarta dimensão,
Não é uma deformação do espaço,
Não é Cronos,
Não é a força da gravidade na TPM,
Não é relativo porra nenhuma:
O tempo é a madrugada.

Todo o resto são horas,
Relógios, imbróglios,
Minutos celerados
Ampulhetas viciadas em milésimos de segundos,
Medições do nada.

Não é a falta da madrugada 
Que me impede de ser um gênio.
O que me impede de ser um gênio,
É não ser um gênio.
Mas a falta da madrugada
Me impede de contemplar a madrugada,
De ser comido, digerido e expelido por ela :
Bolo fecal escalpelado de meus nutrientes
E de minha poesia,
Toda ela a emprenhar as insônias e os perambulares.
Me impede de me embebedar,
De chorar, de mentir,
De acertar meus ponteiros.