Todo professor (digo aqui da espécie em extinção dos tradicionais e apegos a formalidades e não dessa nova leva sem postura nem conteúdo, "formada" em faculdades a distância, semianalfabeta) é assemelhado, tem um quê do Carimbador Maluco, personagem de Raul Seixas em Plunct Plact Zum, clássico especial infanto-juvenil da década de 1980, quando a Rede Globo ainda produzia alguma programação infantil de qualidade.
O especial, com duração aproximada de uma hora, narra as peripécias de um grupo de crianças e de adolescentes em uma viagem pelo espaço. Eles vão percorrendo diversos planetas e, em cada um deles, são recepcionados por um habitante nativo, encarnado por grandes nomes da MPB da época, além de Raul Seixas, Maria Bethânia, Eduardo Dusek, Fafá de Belém (grande Fafá), Gang 90 & as Absurdetes e até Jô Soares, que defende com muita competência um rock animado na canção Planeta Doce.
Porém, logo no início de sua jornada sideral, antes de propriamente se lançarem ao éter espacial, indo onde nenhuma criança jamais esteve, eles dão de cara com o Carimbador Maluco, um tipo de guarda rodoviário galáctico, ou um fiscal de aduana interestelar, Raul Seixas bem a caráter, numa roupa das mais estrambóticas. Que vai logo lhes dizendo : - Parem! Esperem aí./Onde é que vocês pensam que vão?/Plunct Plact Zum/Não vai a lugar nenhum!!/Plunct Plact Zum/Não vai a lugar nenhum!!/Tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar! E segue a lhes cobrar taxas de viagem para a Lua, que mostrem a identidade caso queiram ir ao Sol e a decretar que, para o foguete deles voar pelo universo, é preciso de seu carimbo dando o sim.
O Carimbador Maluco não é, como pode parecer, ainda mais num país de povo desaculturado e irresponsável, um chato de galochas, um estraga-prazer, um amargurado a querer gorar a diversão alheia. Nada disso. Antes pelo contrário. A aparente - e mal interpretada - chatice do Carimbador Maluco é a mais pura e genuína manifestação de preocupação para com os jovens e inexperientes astronautas, sua burocracia é puro zelo. Quer saber se está tudo nos conformes com a nave, se tem cinto de segurança, extintor de incêndio, se tem estepe, se foi feita a revisão do motor, se o óleo foi trocado, se o comandante renovou a carteira de habilitação etc. Tudo para assegurar o êxito da viagem da molecada, bem como suas integridades físicas.
Tanto que, no decorrer da letra da canção, o Carimbador Maluco se declara afeiçoado à gurizada, diz que, se pudesse, até gostaria de ir com eles. Mas não pode. Então, deseja-lhes boa viagem e até outra vez : Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês/Aventura como essa eu nunca experimentei!/O que eu queria mesmo era ir com vocês/Mas já que eu não posso/Boa viagem, até outra vez.
O professor - o bom professor, repito - é o Carimbador Maluco. Diariamente, ele faz o papel de chato para com os aprendizes postos sob sua responsabilidade. Os avalia, os carimba, os rotula, exige que se mostrem hábeis e competentes, antes de deixar que alcem voo do seguro chão da escola fundamental e média para o espaço desconhecido da vida adulta, de suas vidas profissionais; torcendo para que seu crivo e sua vistoria não tenham deixado passar nem um detalhe de fundamental importância.
Ele também, para a maioria, para a choldra ignóbil, assume ares e feições de chato, ranzinza, intolerante. Mas sempre há - ainda há, felizmente, só não sei até quando - aquela e aqueloutra salas, compostas por alunos mais conscientes, dispostos e cumpridores de seus papéis de estudantes, que reconhecem os cuidados do Carimbador Maluco.
Tanto que, volta e meia, apesar de eu não ser um estandarte da simpatia, sou convidado a ser paraninfo. E bati meu recorde esse ano. Fui escolhido como paraninfo de um terceiro ano e como professor homenageado de outro.
Infelizmente, e aproveito para aqui reforçar as minhas doídas desculpas, compromissos previamente estabelecidos e de datas conflitantes impedirão que eu retribua a honraria a mim outorgada e compareça à colação de grau dos meninos e meninas.
Assim, a sala que me adotou como homenageado, o 3º D, deu-me, hoje, um presente, uma lembrança, que comumente é entregue ao homenageado durante a colação de grau. Uma sacola contendo um CD com uma coletânea do Raul Seixas (inclusa o Carimbador Maluco, lógico), um bonito canecão de vidro e dois latões de 710 ml de uma excelente cerveja, DadoBier.
Raul Seixas e cerveja... que melhores presente e homenagem poderiam me ter sido dado e prestada? Só mesmo o bilhete que acompanhou o agrado, cujo conteúdo reproduzo aqui, sem nenhum tipo de pudor ou medo de ser considerado arrogante e presunçoso, uma vez que modéstia - seja da falsa ou da verdadeira - nunca foi dos traços mais marcantes de minha personalidade.
O bilhete : "Não somos tão bons com as palavras. Mas queremos que saiba que mesmo que não houvesse um professor homenageado dentro do contexto da formatura escolar, daríamos um jeito de homenageá-lo. Para um grande homem e mestre, de seus alunos e admiradores".
No verso, a assinatura de todos eles.
Pãããta que o pariu, molecada!!! Estão achando que o Carimbador Maluco é feito de ferro, que tem nervos de aço e sangue de barata?
Buscaram-me, em dois, na sala em que eu estava a dar aula e me levaram ao pátio, onde a sacanagem estava armada : o restante da sala reunida para me entregar o presente, aprontaram lá uma animada gritaria, estouraram bexigas. Sabem bem como deixar tímido e envergonhado esse Carimbador Maluco que vos fala.
Entregaram-me o presente. Quiseram discurso. Discurso não houve. Carimbadores Malucos não são bons de discurso. Quiseram uma foto comigo. A foto foi a única coisa que pude lhes dar. Um e outro ainda me agradeceram, apertamo-nos as mãos e eles foram saindo, dispersando-se, partindo em sua viagem, ligando a ignição de suas naves propelidas a algazarra e alegria.
Na cabeça do Carimbador Maluco, um único pensamento : Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês/Aventura como essa eu nunca experimentei!/O que eu queria mesmo era ir com vocês/Mas já que eu não posso/Boa viagem, até outra vez.
O Carimbador Maluco não pode segui-los, tem que voltar à sua burocrática, porém, imprescindível faina.
É nesse momento que o Carimbador Maluco encerra sua participação na vida dos jovens aventureiros, é nesse momento que a câmera abandona o Carimbador Maluco e focaliza a traseira da nave da meninada, a se distanciar, a se tornar menor, até que a luz de seus foguetes tenha sido totalmente tragada e extinta pelo negro do espaço. É nesse momento, sem ninguém a olhá-lo, que o Carimbador Maluco verte uma discreta lágrima, que marca com cicatriz de sal a sua erodida face. E volta ao seu trabalho, à espera dos próximos viajantes.
Boa viagem, meninos, boa viagem...
Sem demagogia nem falsas adulações, é o que, de verdade, lhes deseja esse Carimbador Maluco Beleza.
Em tempo : ainda hoje, aliás, daqui a pouco, estrearei a caneca. Garanto-lhes que ela me será fiel companheira, até o dia em que, desgraçadamente, eu, exímio quebrador de copos, canecas e xícaras, a deixarei se esfacelar, fragmentar-se em cacos, contra o chão, contra a pia da cozinha. Prometo-lhes, no entanto, que recolherei os seus cacos mortais, reduzirei-os a pó de vidro e acondicionarei tudo em uma urna mortuária, sempre a ocupar um lugar de destaque em minha casa. Tudo na vida se quebra, meninos.
Já a cerveja, igualmente lhes garanto, não viverá para ver o dia de amanhã. Mas guardarei um lata (vazia) de recordação. Obrigado, de novo.