domingo, 4 de agosto de 2013

O Reencontro Entre Ele-Que-Não-Era-Ele e Ela-Que-Não-Era-Ela

Ia vinte e poucos amarelados anos que ele não a via. Desenhou no rosto à sua frente o que julgou que o tempo houvesse cinzelado no rosto do qual se lembrava, acrescentou-lhe dosadas quantidades de luz e sombras : marcas de alegrias e pesares, de festas e funerais, de êxitos e malogros, de casamentos felizes e duas ou três separações litigiosas, de filhos não programados ou da vontade não realizada de tê-los, algumas rugas em torno dos olhos e da boca, alguns cabelos brancos cobertos por tintura, umas discretas papadas sob os olhos e o pescoço.
Não concluiu que fosse realmente ela. Resolveu arriscar : 
- Andréa?
Andréa fora uma grande amiga dele nos tempos da faculdade, o tipo de amiga por quem ninguém deveria se apaixonar. E ele se apaixonou. Manteve o dolorido segredo por muito tempo, ou pelo que lhe pareceu um enorme tempo na época, mas quando começou a ver nela sinais de reciprocidade - sinais que só ele via -, declarou-se. Não ganhou uma namorada, uma amante, ganhou uma amiga que cada vez mais se distanciou.
- Sim, sou a Andréa - ela respondeu.
Não era. Mas Andréa-que-não-era-Andréa reconheceu no rosto à sua frente, depois de acrescentar-lhe as mesmas dosadas porções de luz e sombras que o seu havia recebido, o rosto de Victor.
Victor fora um amor seu da adolescência, que a preterira, na ocasião, por uma moça de nome Andréa.
- Sim, sou a Andréa - reforçou Andréa-que-não-era-Andréa a Victor-que-não-era-Victor.
Seguiram-se, então, uns trinta ou quarenta minutos de curiosidades trocadas, à guisa de atualização. Um perguntando pela vida do outro.
As respostas dadas por ela, os caminhos tomados, não coincidiam com as respostas que ele pensara em ouvir de Andréa, com os caminhos que ela pudesse ter seguido.
As respostas dadas por ele, os caminhos pelos quais precisou se desviar, não coincidiam com as novidades que ela pensara em ouvir de Victor, com os rumos em que ele pudesse ter se encontrado.
Andréa e Victor não se reconheciam, é verdade. 
Andréa-que-não-era-Andréa e Victor-que-não-era-Victor, porém, reconheceram-se na mesma hora, imediata e intensamente.
Victor-que-não-era-Victor convidou-a para ir ao mesmo cinema em que estivera algumas vezes com Andréa.
- Lembra desse cinema? - Victor-que-não-era-Victor perguntou-lhe.
Andréa-que-não-era-Andréa não se lembrava, mas como era Andréa, respondeu :
- Lembro, claro que me lembro.
Em seguida, Andréa-que-não-era-Andréa levou Victor-que-não-era-Victor à mesma sorveteria onde, por vezes, sentara-se com Victor.
- Lembra dos sabores que sempre pedia? - perguntou Andréa-que-não-era-Andréa.
Victor-que-não-era-Victor  não se lembrava, mas Victor que ela o olhava, lembrou-se.
- Uma bola de ameixa e uma de pistache.
À Andréa-que-não-era-Andréa, não pareceu ser um pedido que Victor teria feito, mas ela era Andréa, então o pedido de Victor-que-não-era-Victor lhe pareceu totalmente plausível; lembrou-se, Andréa-que-não-era-Andréa, de que era justamente isso o que Victor sempre pedia, ameixa e pistache.
Caminharam, após, por horas, madrugada afora, pelas ruas do centro da cidade. E aí, não foram necessárias nem mais perguntas nem mais fadigas à memória para que se lembrassem de algo.
Andréa-que-não-era-Andréa já houvera mesmo caminhado por diversas vezes com Victor pelas ruas de madrugada, como amigos, a esperar por um beijo à despedida, que Victor nunca tivera vontade de lhe dar;
Victor-que-não-era-Victor também já caminhara repetidas vezes com Andréa pelas ruas de madrugada, como amigos, a esperar, à despedida, pela coragem de dar em Andréa um beijo, que ela nunca pediu.
(Talvez, em suas andanças, Andréa-que-não-era-Andréa e Victor  já tenham até se cruzado, em calçadas e sentidos opostos da mesma rua, com Victor-que-não-era-Victor e Andréa.)
Ao fim da caminhada, Andréa-que-não-era-Andréa e Victor-que-não-era-Victor não se despediram. Tiveram mais vontade do que Victor jamais tivera de beijar Andréa-que-não-era-Andréa e muito mais coragem do que Victor-que-não-era-Victor jamais se investira para beijar Andréa : beijaram-se.
Depois de 20 e tantos anos, na casa e na cama de Victor-que-não-era-Victor, conduzidos por Andréa-que-não-era-Andréa, Andréa e Victor finalmente treparam. E adormeceram juntos.
O resto tornou-se insignificante. O resto era só a realidade.
A realidade pura e besta.

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