02h11. Como diziam antigamente - pensa Rubens, ou nem pensa, simplesmente o pensamento o invade -, cheguei ao fim do pito.
O fumo do cigarro, do temporizador da bomba-relógio que é a vida, há
muito foi todo queimado. Não satisfeita, a vida, árbitro que se apraz do
sofrimento, decretou acréscimos, prorrogações.
E
Rubens lembra de quando ia, de quando, na verdade, era levado aos
campos de futebol por seu pai. Preferia estar em casa, vendo festival
Jerry Lewis, mas ir sentar-se às arquibancadas de cimento, à geral, ao
sol das três ou quatro da tarde, parecia fazer seu pai feliz. Contava
cada um dos noventa minutos, como um condenado cronometra, em contagem
regressiva, os dias de sua soltura. E vinha, então, os acréscimos, as
prorrogações, as decisões por pênaltis. Por que não pular por sobre toda
a tortura e ir direto para os pênaltis?
Enfim,
o fumo do cigarro que Rubens recebeu ao nascer fora todo queimado, mas a
vida queria mais de Rubens, mais diversão, feito menino que arranca a
cabeça de uma saúva e fica a ver seu corpo andar às cegas, que joga sal
em uma lesma ou às costas de um sapo, ou que amarra uma linha de costura
na bunda de uma borboleta e passa a tarde a empiná-la feito a uma pipa
de papel de seda e rabiola de plástico de saco de lixo.
Juiz ladrão de jogos de várzea, a vida decretou acréscimos a Rubens.
Depois
do fumo queimado, o filtro amarelo (a vida de Rubens sempre foi das
mais baratas) incinerado, as pontas dos dedos, derretidas, as falanges
distais do polegar e do indicador, calcinadas. A vida queimou em seu
sumário Tribunal do Santo Ofício tudo o que havia, podia e não podia de
Rubens.
Rubens
só não explode e colapsa em uma supernova porque nunca teve estofo e
combustível suficientes para arrastar consigo, para fazer-se acompanhar à
sua cova, planetas caducos e estrelas recém-nascidas.
Nem
mesmo para uma combustão espontânea. Nem mesmo pavio para o kundalini,
nem mesmo rastilho para o fogo serpentino. Para um velório sem choro nem
vela. Para uma cremação sem plateia.
Rubens
nunca soube o que era decorrência do quê. Se a insônia, de suas
angústia e depressão; ou suas angústias e depressão, de sua insônia.
Nunca
lhe importou, na verdade. Acabava por lhe ser um tempo que a maioria
das gentes - a dormir e a roncar, depois de, talvez, uma fornicada de
três minutos - não dispunha. Um bônus, de mãos dadas sempre a um ônus,
mas um tempo a mais.
Nessa
bolha espaço-temporal, nessa Zona do Crepúsculo, Rubens lia, lia pra
cacete, assistia a filmes, quanto mais longos, melhores, ouvia músicas,
escrevia, escrevia e escrevia.
No
dia seguinte - sempre sombrios -, as horas passadas em claro não lhe
pesavam; eram-lhe, em verdade, se não faróis na borrasca, lampiões na
falta de um luar em seu sertão.
Mas isso já se foi, tudo isso já era - como tudo deixa de ser, como tudo caminha para a entropia, para o zero absoluto.
A
angústia, a depressão - xifópagos de Rubens - permanecem, fiéis,
inarredáveis, mas não inspiram mais à criação, só ao desespero, ao
pânico; a insônia também persiste, pertinaz, inexorcizável, mas não tem
mais fome de ver, ouvir, conhecer.
Rubens,
invariável e desgraçadamente, por volta das três da madrugada, rola e
peregrina quilômetros pelo colchão, um romeiro em busca da graça de um
fugaz cochilo que seja, ou pelado, saco e rola enrugados pelo fresco da
madrugada, anda léguas tiranas pela sacada do apartamento. Um holandês
voador a remar num deserto que já foi oceano.
A
angústia, a depressão e a insônia, outrora suas Três Graças, sua trinca
de ases de musas, hoje são apenas angústia, depressão e insônia, como
as de qualquer cidadão comum.
Rubens reduzido ao mais vulgar dos comuns - e entorna o resto do latão. Por que não logo a morte? - pensa.
Por
que não logo a morte extinção da matéria e da consciência, por que
antes esta morte de todas as possibilidades, por que antes esta morte de
desejar morrer?
Por
que antes a mesma morte dos mortos que o rodeiam, dos mortos com quem
convive como se vivos fossem? Por que antes a mesma decomposição e fedor
da finitude que tarda tanto a acontecer?
Começando
outro latão, Rubens se lembra de uma consulta médica marcada na semana
que vem, um encontro com um desses sádicos exímios em prolongar o
sofrimento e o martírio. Decide que não comparecerá. No ano que vem,
talvez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário