domingo, 10 de setembro de 2023

Cenas de Cinema

Quando a vi, logo ali tão perto, a 20 ou 30 passos meus, ela havia sido abandonada, largada à calçada, à sarjeta, deixada às intempéries do tempo e do esquecimento. Ela estava curvada, dobrada sobre si mesma, sob a marquise de um prédio e a goteira de um aparelho de ar-condicionado.
Mesmo àquela distância, reconheci nela o seu passado digno e glorioso. A tipografia clássica. O castiço português, do tempo do império dos acentos circunflexos.
Cheguei-me a ela cuidadoso, abaixei-me, tomei-a pelas mãos, levantei-a com extremo zelo para que não se rasgasse ou se desfizesse, desdobrei-a, deixei o excesso de água escorrer e pingar na calçada, abri minha bolsa de lona cáqui, abri meu caderno e a deitei esticada entre suas páginas, para melhor recompor-se e secar.
Uma folha de um antigo, e já extinto na forma impressa, jornal da cidade. Menos que uma folha até, apenas metade dela. Jornal O Diário, de uma quinta-feira, 2 de dezembro de 1971. 6.194º edição. Eu contava com apenas quatro anos e pouco de idade, então.


Bem a página "cultural" do dia. Com a programação do canal de TV (acho que assim mesmo, no singular) e dos principais cinemas da então pequena e pacata Ribeirão Preto.


Das atrações da telinha - notem que a TV só ia ao ar a partir do meio-dia -, lembro-me da Noviça Voadora, do Anjo do Espaço, de I Love Lucy (eu "hated") e da Pantera Cor-de-Rosa. Da telona, cheguei a conhecer os dois cinemas, o Bristol, onde assisti ao primeiro Superman, com Christopher Reeve, e o Pedro II, em cujas cadeiras muito gargalhei com o primeiro filme dos Trapalhões, Robin Hood, o Trapalhão da Floresta.
Achar a folha do jornal foi como tropeçar no passado, cair no Túnel do Tempo, virar figurante de um episódio de Além da Imaginação (o original, não o remake de merda que Spielberg fez depois). Foi como dar com uma foto esquecida de um velho amor no fundo de uma gaveta.
Eram tempos mais satisfatórios? Provavelmente, sim; provavelmente, não. Mas éramos crianças : o melhor dos tempos.
Lembrei-me do carpete vermelho e felpudo, do grande candelabro, do balcão que vendia Mentex, dos azulejos azuis e roxos dos banheiros do Bristol, de seus quase 700 lugares. Lembrei-me do teto abobadado, das cornijas e dos camarotes no andar superior do Pedro II, Cine e Teatro oriundo dos tempos auriverdes do Ciclo do Café..
Que esse é o gozo dos velhos. Lembrar. Mil vezes a impotência, o Alzheimer da massa fálica que o da massa encefálica. Eram tempos mais simples, na certa. Menos frenéticos e esquizofrênicos. Repararam nos telefones dos cinemas? Apenas quatro dígitos. Nem parece telefone. Parece endereço, número de casa.
Na ocasião da edição do jornal, o Pedro II estava com dois clássicos em cartaz. 
Tora, Tora, Tora, o longa-metragem nipoamericano sobre o ataque a Pearl Harbor. Teve a parte japonesa dirigida por ninguém mais ninguém menos que Akira Kurosawa. Devo tê-lo assistido não no cinema - eu tinha apenas 3 anos quando de seu lançamento, em 1970 -, mas várias vezes no Primeira Exibição e no Corujão, já na Rede Globo. Tora, Tora, Tora significa Tigre, Tigre, Tigre e era o código usado pelo comando japonês para ordenar um ataque de seus kamikazes. E tinha que ser Tigre, mesmo. Porque tora de japonês não mete medo em ninguém.
Moscow contra 007, ainda com Sean Connery, no qual o agente de sua majestade com licença para matar recebe a difícil missão de ajudar uma agente soviética dissidente gostosa pra caralho a fugir de seu país e recuperar uma leitora de códigos na embaixada russa. O que Bond não sabia era que a missão fora tramada pela organização Spectre, no intuito de atrai-lo a uma arapuca. Bond frustra os planos da Spectre e, claro, passa a vara na agente russa.
Se o primeiro filme - Tora, Tora, Tora - fosse reexibido ou refilmado hoje em dia, iria bombar, viralizar; equivocadamente, mas iria. As salas iriam lotar de maconheiros. Tora, tora, cadê a tora?, perguntariam os bichos grilos.
Pãããããããta que o pariu!!!!!

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