segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Pequeno Conto Noturno (98)

03h27.
- Derradeiro e definitivo : não mais chegarei a escrever tudo o que meu cérebro tenta e ansia em me ditar; não mais chegarei a amar todos os rounds que meu coração ainda quer lutar - balbucia Rubens, a voz pastosa, cabeça deitada no colo de Wanda.

- Tá bebaço, né, filho da puta? - ri Wanda.

- Mais bebaço que o normal, e a culpa é tua, fanchona.

Wanda é amiga de extensa data de Rubens, talvez quase trinta anos. É sapata raiz. De respeito. Pinto, na cama de Wanda, nem de borracha. Com Wanda, como ela insiste em dizer, é olho no olho e grelo no grelo. Fosse lamarckista a Evolução, Rubens supõe que o de Wanda contaria com palmo, palmo e meio de tamanho. Todos os animais de estimação que Wanda teve foram machos. Só pelo prazer de mandar que lhes cortassem as bolas.

Esbarraram-se, Rubens e Wanda, em uma festa de república, quando, na ocasião, os dois estavam a disputar a atenção de uma gostosa. Wanda garfou a buceta. Desde então, sabe-se lá por quê, ficaram amigos, saem juntos às vezes, quando ambos estão, como agora, desiludidos com as mulheres.

- Culpa minha, velho de merda? Eu te amarrei numa cadeira, enfiei um funil na tua boca e fiquei despejando cerveja nela a noite toda, né?

- Praticamente, isso - diz Rubens. Churrasco vegano, porra?!?!? Vegano?!?!? Se soubesse, não teria ido nem a porrete. Cenoura, cebolas, berinjelas, cogumelos, abóbora... é muita preocupação com o bem-estar animal pro meu gosto, muita consciência ambiental, muita empatia pelo planeta... embora, tenha me parecido que o único que chegou a pé no "churrasco" foi esse carnívoro desalmado aqui, o resto, tudo de carro, tudo queimando gasolina e álcool e criticando o efeito estufa do peido do boi.

- Os cogumelos, você bem que gosta, eu sei, e a abóbora também tava boa... de mais a mais, o que tem, vez ou outra, comer alguma coisa mais saudável?

- Nem vou dizer, nem tô em condição de dizer, que saudável é tudo o que nosso corpo precisa, requisita, temos dentição tanto para triturar vegetais quanto para cortar e rasgar carne, temos enzimas capazes de processar tanto matéria animal quanto vegetal, logo... mas o pior, longe disso, nem são as gororobas veganas, nem são as pseudopicanhas, as linguiças fake, a grande desgraça de um churrasco vegano é o vegano em si. Todos aqueles afrescalhados queimando quilos de carvão e posando de moralmente superiores por terem poupado a vida duma galinha. Ora, vão à merda. E churrasco é pra falar besteira, pra contar piada preconceituosa, pra falar mal da vida dos outros, de política, de futebol e o caralho a quatro. Reunião de veganos só tem um assunto : o veganismo. Só a porra dessa filosofia degenerada e pernóstica de vida deles. É ou não é mesma coisa que me obrigar a tomar cerveja aos galões, o mesmo que me enfiar um funil na goela e despejar goró?

- Achei que você ia dizer que tinha muito viado.

- E tinha. Mas tinha muito mais era viadagem, era frescura, era afetação, falsa sofisticação. É o que me deixa puto.

- Também não te chamo mais pra porra nenhuma, seu misantropo de merda.

- Fico muito agradecido se cumprir sua promessa. Tanto que sou capaz até de dar uma chupadinha em você.

- Vá sonhando... e que porra é essa de não mais escrever o que o cérebro quer, de não mais amar o que o coração ainda aguenta? Tá em delirium tremens, é? Só faltou falar que não mais comerá todas as bucetas que a tadalafila ainda pode lhe proporcionar.

- E cus. Nunca nos esqueçamos do cu. Mas nesse caso, não. O cérebro e o coração, sim, se ressentem da minha inatividade, da minha prostração. Mas não o pau. Foi justamente o pau que jogou a toalha há tempos, tornou-se inapetente.

- E?

- E que se o pau não quer, o resto fica na vontade. É o pau que escreve. É o pau que ama. Se ele se recusa, cérebro, coração, tornam órgãos vestigiais.

- A coisa tá ruim assim, é?

- Se não acredita, enfia a mão aqui nas minhas calças, pega e balança pra ver.

- Vou é atolar três dedos no seu cu! Um fio-terra trifásico. Quem sabe o pau não se anima, velho brocha.

Gargalham, os dois, alto.

- Wanda - começa Rubens - vai lá na geladeira e pega mais um latão pra mim e um pra você.

- O cérebro e o coração estão negligenciados, mas o fígado parece não ter do que reclamar, né?

- Mais uma, menos uma...

Wanda volta com os latões e passa um a Rubens, que se senta.

- E quem é mais fácil de convencer, sei lá, de fazer se conformar com os quereres inalcançáveis, o cérebro ou o coração?

- O coração já nasceu submisso por natureza, né, Wanda?

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