A primeira pessoa a desconfiar de que eu não fosse bom da cabeça foi a minha mãe. Houve uma época da minha infância em que, nas férias escolares de fim de ano, duas visitas me eram obrigatórias : ao dentista e ao neurologista.
Por várias vezes, tive minha atividade cerebral mapeada em eletroencefalogramas na esperança de ser encontrado algum distúrbio ou alguma anomalia que explicasse o meu comportamento, tido como estranho pelos meus pais. Nunca foi detectado nada que fosse motivo de alarme. Afinal, existem muitos mais mistérios entre a minha mente e um aparelho de EEG do que pode supor a vã medicina.
Lembro de tomado, durante um tempo, antes de dormir, um quarto de um comprimidinho amarelo, do tempo em que comprimidos vinham em vidros de cor âmbar (e não em cartelas de plástico bolha) e protegidos por um chumaço de algodão. Não me lembro o nome do comprimido nem a que ele se destinava, em que ele, supostamente, iria me ajudar; ou aos meus pais. Mas foi por pouco tempo. A partir de uma certa idade, meus pais deixaram de tocar na questão. Vai ver, deram-me como um caso perdido.
A segunda pessoa a recomendar que eu procurasse um médico de loucos foi uma ex-namorada. Eu contava com 32, 33 anos, e talvez devesse tê-la ouvido na época. Dizia com propriedade, com conhecimento de causa. Era tarja preta diagnosticada.
Preocupava-a a minha amargura frente ao mundo e as minhas oscilações de humor, que poderiam ser originárias de algum distúrbio ou transtorno, segundo ela. Por meu lado, eu pensava (e ainda penso) que algum distúrbio sério ou grave alteração neurológica ou psiquiátrica deveria ter quem vive feliz e sorridente o tempo todo, haja vista o mundo em que vivemos. E que meus defeitos eram o que de melhor eu trazia em mim - e continuo pensando.
Diante de minhas evasivas em me consultar com um terapeuta que pudesse me prescrever um "regulador de humor", volta e meia, presenteava-me com uns calmantes faixas brancas, uns fitoterápicos, geralmente à base de passiflora, a flor da paixão, o famoso maracujá. Amiúde, levava-me um frasco de Maracugina, que recomendava que eu tomasse com um pouco de leite morno. Ela virava as costas e eu tomava com vodka. Ficava bom.
Em relação a esse tipo de droga, que nos ajuda a suportar melhor a realidade, que deixa o mundo mais tolerável aos nossos olhos, sempre vivi num dilema : o mundo - esse mundinho de merda e de merdas - merece que eu me dope, que eu me drogue por causa dele? Ou : o mundo - esse mundinho de merda e de merdas - merece que eu me consuma, que eu me exaspere ao enfrentá-lo sóbrio, de cara limpa?
Durante toda a minha vida me ative à negativa da primeira questão. Mesmo porque suporto melhor que a maioria certos quadros de tristeza, depressão, insônia, anedonia. Nasci deprimido. Nasci quebrado.
Meu pai gostava muito de nos fotografar quando em crianças. Viagens, aniversários, reuniões de família. Ele guarda, muito bem guardados, até hoje, dezenas de álbuns de fotografias. Desafio alguém a fuçar por entre as centenas de fotos e me encontrar sorrindo em alguma delas. Inclusive, houve época em que acho que era meio moda fazer pôsters dos filhos e pendurá-los pela casa. Até hoje, o meu está exposto numa parede do apartamento onde meus pais moram. Eu devia ter uns sete ou oito anos nele. Tal pôster, para explicá-lo melhor, deu origem ao poema A Criança do Pôster.
Mas o mundo é o mundo. Tem todo o tempo do mundo. Age sem pressa e sempre dá um jeito de nos enquadrar, de fazer-nos pagar a desajuizada língua.
Depois de 55 anos, resolvi experimentar a negativa à segunda questão do meu dilema : não, esse mundinho de merda e de merdas não merece que eu mais me consuma ao enfrentá-lo sóbrio. Pedi arrego. Não exatamente ao mundo. Mas a mim mesmo. Mereço, pelo menos, tentar um descanso de mim.
Por recomendação de uma colega de profissão, procurei um neurologista com quem ela se trata, e que a libertou do infames tarjas pretas do psiquiatra, que a deixavam meio fora do ar o dia todo.
Em vinte e poucos minutos de conversa, o nada surpreendente diagnóstico : depressão profunda e ansiedade. E isso porque, no dia da consulta, eu estava num dia bom, apenas a relatar e a fingir a dor que deveras sinto. Se eu estivesse num dia dos brabos, ele teria recomendado internação imediata.
Até aí, nada que eu não soubesse. Se tem alguém que sabe exatamente o que se passa na minha cabeça, esse cara sou eu. Não preciso de nenhum especialista para me entender. Preciso deles para que me receitem remédios. E também sei a cura para o meu mal. Mudar de profissão. Parar de ter contato com a ruína moral em que se transformou grande parcela da sociedade tupiniquim. Sei a cura. Mas ela não é viável. Então, o paliativo.
Receitou-me dois remédios. Pela manhã, o succinato de desvenlafaxina, que, de acordo com a bula, é indicado "para tratamento do transtorno depressivo maior (TDM, estado de profunda e persistente infelicidade ou tristeza acompanhado de uma perda completa do interesse pelas atividades diárias normais)". Ao fim da tarde, o divalproato de sódio, para estabilizar meu humor, segundo o que o neurologista me disse em seu consultório. A bula é menos eufemística : "Divalproato de sódio é destinado para o tratamento de episódios de mania associados com transtornos afetivos bipolares".
Tenho-os tomado há 10 dias e, apesar dele ter me dito que os efeitos seriam sensíveis depois de 20 dias a um mês, creio que já os percebo em mim.
Aquele aperto a queimar o peito desapareceu. Não que eu me sinta maravilhosamente bem, mas não me sinto profundamente mal. Ânimo para realizar minhas tarefas diárias ainda não apareceu (se é que vai), mas realizá-las não tem me afligido tanto.
Tenho comido bem menos. Não me vem mais aquela voracidade, sobretudo à noite, de me entupir do que eu achasse pela frente. Mesmo a vontade/necessidade da cerveja passou, não bebi (e nem poderia junto a essa medicação) e nem senti falta da cerveja nesses dez dias, até agora.
Aporrinho-me menos, mas também meus raros lampejos de animação sumiram. Hoje é sábado. Geralmente, entre sexta-feira depois do almoço até sábado à noite estou em melhor estado de humor, animado para regar meus cactos e suculentas, para ouvir minhas músicas. Não que eu esteja mal agora, mas hoje ser sábado parece não diferir de ser uma terça, uma quarta etc.
Pelo jeito, os remédios são uma espécie de giroscópio de humor e de estado de ânimo, não deixam que eles saiam de uma reta traçada, nem para mais nem para menos. São nobreaks, mantêm nossa voltagem constante. Nem vales nem picos de emoção.
Nem agonia nem êxtase.
É. O diagnóstico é importante por causa do acesso para a medicação e também porque só com 4le a sociedade reconhece o que vc tem. Eu nunca fui atrás, por isso ninguém nem reconhece o que tenho, e já deixei de falar também, porque não importa a ninguém e ninguém se importa. Você tem 55 anos. Eu tenho 45 e já tenho que apelar pra tadalafila. Não tenho problema orgânicos, mas o psicológico mesmo é que não ajuda, não tenho mais a libido de outrora porque não há tesao e concentração de outrora. Nem tenho tomado porque nem me lembro qual mês precisei, pois minhas mãos dão conta do recado. Em tudo existe o pesar. Nem sempre intenso. As vezes uma leve sombra. Mas ele está lá. Focanfo em você, digo que esses remédios aí vão te ajudar. Mesmo comendo menos, a tendência será engordar um pouco e se tornar risonho e filosofar amor pela vida. Um abraço, meu caro.
ResponderExcluirEssa leve sombra de que falou me acompanha desde sempre, mas se tornou mais densa nos últimos tempos; talvez pela responsabilidades, preocupação de ter que aguentar mais uns tantos anos até acabar de criar o filho.
ExcluirRisonho? Acho difícil... mas vamos ver.
Na verdade, nesses dez dias, como deixei de beber e tenho ido dormir mais cedo, o que me faz também não comer à noite, perdi uns dois quilos. Algo de positivo, pelo menos.
Abraço.
Pô, Marreta, já que estamos desfilando idades, o Fabiano tem 45, você 55 e eu 72 (muita coisa). O que me impressiona é ver que o que descreve tem muito a ver comigo também. Talvez eu seja uma espécie de Marreta mais velho e aparentemente um pouco mais esculachado. Meus pais nunca me levaram a nenhum neurologista nem a um psiquiatra ou psicólogo. Fui eu mesmo que decidi procurar ajuda de um terapeuta. E isso foi bom, mesmo que eu não tenha sido "liberado" pelo psiquiatra (ele era médico de doidos, não era psicólogo. E era muito foda). Eu mesmo me "liberei" em virtude da falta de tempo (eu já estava perto da formatura) e da grana curta. Mas foi uma experiência muito boa. Infelizmente (para você), percebo que faz o mesmo raciocínio de minha mulher. Ela disse que nunca faria terapia pois ela sabe o que tem. Ela assinaria embaixo de sua frase "Se tem alguém que sabe exatamente o que se passa na minha cabeça, esse cara sou eu. Não preciso de nenhum especialista para me entender", pois foi isso que ela sempre disse. O problema é que se ela sempre soube de seus fantasmas interiores, nunca conseguiu afugentá-los sozinha. E esse é o papel do terapeuta, ser um espelho para que você realmente se veja como é. E isso pode doer. Fiz dois anos de psicanálise (o que não é nada nesse tipo de terapia. Tem gente que faz durante dez, quinze anos). Hoje eu faria uma coisa mais pragmática (com gente competente, lógico). Foda-se como foi minha infância ou juventude, se eu quis comer minha tia ou dar o cu para o padeiro (nada disso aconteceu), o que eu quero é saber como fico melhor a partir de agora. Uma coisa que atrapalha muito (minha opinião) é o nível de inteligência de cada um. Sou casado com a mulher mais inteligente que já conheci. Essa inteligência pode levar a algum ceticismo sobre os resultados (nunca imediatos) da terapia. Percebe-se que você é um cara muito inteligente, cerebral, crítico, sarcástico. Imagino que para uma terapia te ajudar você precisará descer do seu pedestal e encarar o mundo de outra forma. Falo isso porque sou assim também. Como sei que sou bastante inteligente tenho pouca tolerãncia e um certo desprezo por valores pré-estrabelecidos de que discordo. Falei demais e nem sei como terminar este comentário. Só posso te desejar sucesso e alegria de viver. Você tem motivos para isso. Troque uma ideia com o GRF, talvez seja instrutivo.
ResponderExcluirJotabê, mais uma vez, obrigado pelas palavras e pelo conselho. Garanto que vou levar em conta tudo o que disse.
ExcluirValeu.
Meu caro e querido amigo AZARÃO, esta sua afamada situação foi e sempre será sua marca histórica, afinal de contas não a gênios que passem por essa vida inertes aos seus monstros e medos. Mas me surpreende uma pessoa tão inteligente como vc, ter a faca e o queijo na mão e não saber cortar. Se existe um diagnostico o próximo passo seria a sua aposentadoria baseada em fatos, e nesse quesito o sr poderia enfim se ver livre desse fardo que me desfiz a mais de uma década. E olha q isso me trouxe uma outra visão da vida. Agora falando no português claro, se for para viver sem buça e sem álcool, é preferível a doença q a cura........
ResponderExcluirIsso da aposentadoria não é tão simples assim. Às vezes, leva anos para uma simples readaptação. Mas é uma ideia.
ExcluirIdeia, isso é simplesmente a solução dos seus problemas.....kkkkk. O Lula aposentou so por conrtar um dos dedos....kkkk.
ExcluirOlá, Marreta, como vai por aí?
ResponderExcluirMe identifico com você. Tenho só metade da idade mas sempre vivi assim, num mundo que parecia negro e fadado a tristezas. Enquanto meus colegas estavam a rir das imbecilidades do mundo, eu não conseguia entender aquilo e ficava deprimido com a podridão de tudo e de todos.
Eu sempre fui contra remédios para depressão, só os aceitando em último caso. Na minha cabeça, como você cita no seu texto, viver é enfrentar a merda do mundo.
["....merece que eu me dope, que eu me drogue por causa dele?" Não seria o álcool uma forma de se dopar? Eu sempre o considerei assim, como uma forma de atenuar minha cabeça em relação aos momentos difíceis, uma forma de esquecer um pouco.]
Outra coisa que sempre me afligiu foram os pensamentos sobre a morte. Esse desespero e taquicardia as vezes me bate quando penso nisso, mas respiro e sigo em frente.
Sei que suas aulas talvez sejam um problema. Dar aulas para o ensino fundamental deve ser um porre mesmo. Mas talvez haja maneiras de sair dessa buscando algumas alternativas mais palatáveis, que teriam de ser avaliadas por você.
Cuidado meu velho, para não acabar sumindo, sucumbindo aos remédios. Despeje seus demônios nessas páginas em branco e siga em frente.
Abraços e melhoras!!!
Sim, é claro que o álcool é uma forma de se dopar, mas eu estava a abusar dele, bebia quase que diariamente.
ExcluirTentarei esses remédios por um tempo e pesarei os prós e os contras. Sim, meu maior receio é ser anulado por eles. Por isso, resisti tanto em usá-los.
Alternativas para mim, na idade em que estou, não vejo nenhuma. Ainda que, magicamente, uma nova vocação despontasse em mim, na minha idade, jamais eu seria absorvido pelo mercado de trabalho, independente da minha competência ou não.
Abraço e obrigado pelas palavras.
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ResponderExcluirEu tenho aulas em todas as manhãs e em duas tardes. Sinceramente, eu não teria saúde (menos ainda) para lecionar à noite. Não sei como é o ambiente na escola em que você faz estágio, mas na em que eu leciono é bem barra pesada. Semana passada mesmo, a polícia teve que baixar lá de novo, tráfico de drogas.
ExcluirSem cerveja e de pinto mole? Que tratamento infeliz é esse?
ResponderExcluirSobre: "deveria ter quem vive feliz e sorridente o tempo todo, haja vista o mundo em que vivemos", mas é bem isso. Observe os maluquinhos: eles vivem sorrindo pro nada o dia inteiro. A vida é dura e o mundo é cruel. O mundo não vai me dar sua graça gratuitamente: tenho que tomá-la.
Se sentir que a mediação poderia trazer melhores efeitos, fale com o médico para regular dosagens etc.
Abraços!