Fatos
: ele tem um serviço de merda; um salário de merda; está a ver soçobrar
em desgostos toda a dedicação, toda a disposição, toda a empreita, toda
a esperança empenhadas na boa formação, instrução e educação do filho
(esperança... raramente, ele tem coragem de usar esta palavra, e sempre
que o faz, ela continua com o status de substantivo que sempre teve :
abstrato); nem o sono/sonho, este irmão mais piedoso da morte, acolhe-o.
Sentado,
então, finalmente, ao sofá, ao fim da noite, exaurido e exangue fisica,
mental e animicamente, ele desabafa : tenho um serviço de merda, um
trabalho de merda, em casa, decepções, um sono interrompido e
sobressaltado. O que sobra ainda?
Nem
se pode dizer que foram palavras ditas ao vento, o seu desabafo. Se
fossem, ainda que não atingissem os tímpanos destinatários (ou que esses
lhe fizessem ouvidos moucos), poderiam para outros serem carregadas,
feito pólen aleatório e infértil. Mas não. Não são ditas sequer ao
vento. São ditas ao vácuo. Meio em que, sabidamente, os sons não se
propagam. Para efeitos práticos, elas sequer chegaram a sair de sua
boca.
O
filho, já deitado, finge que dorme. A esposa, entretida em algum
aplicativo de joguinho colorido no celular. E também, acaba por refletir
ele, o que queria que ela dissesse? O que ela poderia dizer que mudasse
a situação dele? Talvez o aparente ignorar do seu desabafo seja ela a
lhe dizer que as coisas são assim mesmo, que melhor aceitar,
conformar-se, aguentar o tranco, fazer o quê? Talvez fazer que não o
ouviu seja o melhor conselho que ela pode lhe dar. As mulheres sabem
mais da vida que nós.
Na
TV, um entretenimento vazio qualquer, um humorístico antigo, um
programa de viagens ou de culinária. A TV apenas a amordaçar e a varrer
para debaixo do tapete um silêncio incômodo e incomodado que se
instalaria caso estivesse desligada. Um silêncio que imporia e berraria
por conversas talvez igualmente incômodas; a TV a camuflar o elefante no
meio da sala.
A
cachorrinha trazendo a bolinha a ser arremessada para ela apanhar e
trazer de volta, apanhar e trazer de volta, apanhar e trazer de volta.
Ele
se cala. Olha para a noite, para as pernas de ébano dela, repletas de
varizes serpenteantes dos rios amarelos dos postes da iluminação
pública. Alguns relâmpagos acendem o horizonte ao longe. Ele já gostou
muito da chuva. Agora, só pensa e se preocupa se ela se precipitará em
breve ou se só pela manhã, quando de sua saída a pé para o trabalho; só
pensa e se preocupa se ela lhe proporcionará uma madrugada de clima mais
ameno ou um dia todo com os tênis e as meias encharcadas grudando-lhe
nos pés.
Não se alegra mais com a chuva. Com os arcos-íris. Com as enxurradas. Com as aleluias.
Deitar-se-á
em pouco. Sabe que adormecerá rápido, não tem dificuldade em desligar,
mas muita em manter-se desligado. Sabe que o sono não se sustentará por
muito; seja por inquietações subconscientes, seja pela velha e lassa
bexiga a reclamar por ser esvaziada.
Trabalho de merda, salário de merda, ausência de satisfações e recompensas, bom sono inatingível...
Algum
alento? Ainda que momentâneo, fugaz, fugidio, paliativo, ilusório, só
um pouco de saliva passada na ponta do dedo para ajudar a virar a página
do dia?
A
cerveja. Cinco ou seis latas diárias, a fazer as vezes de ansiolíticos e
soporíferos, que poderiam muito bem ser receitados por um psiquiatra.
Não que ele tenha alguma resistência em procurar por um psiquiatra e
pedir pela medicação, não que ele tenha algum preconceito de que
psiquiatra é coisa para doidos - embora seja. Acontece que a espera na
fila do mercado ou da loja de conveniência para pagar a cerveja é bem
menor do que teria que aguardar na antessala do consultório médico. Só
por isso.
Hoje, porém, ele sente que adicionará ainda mais uma ou duas vodkas-tônicas.
Amanhã,
ele lembra, será sexta-feira. Dia auspicioso para os trabalhadores
comuns. Dia que antecede suas minialforrias. Para ele, no entanto, será
só a anteantevéspera de uma nova segunda-feira.
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