Uma
terra só é bom e profícuo útero se também abastado cemitério. Uma terra
só pode emprenhar-se de vida se ejaculada pela morte. Um novo gérmen,
um novo embrião, nutre-se às expensas dos restos mortais decompostos
daqueles que lhe preexistiram; dos seus nutrientes, de seus minerais,
quiçá de suas esperanças de serem imortais, que um dia tiveram.
Não
é diferente com as ideias e com a escrita - sua subsequente
materialização, seu trabalho de parto; em geral a fórceps ou por
cesariana. Qualquer texto minimamente bom e bem escrito só é aceitável
se um cogumelo germinado a partir do estrume, do esterco de outras obras
mortas que lhe antecederam. Por obra morta, eu digo : todas e quaisquer
obras concluídas por seus autores, tenham sido elas escritas, postas a
dançar em pautas musicais, filmadas, pintadas, esculpidas, arquitetadas
etc.
Assim
que o escritor crava o ponto final em seu texto, o músico, o último
acorde em sua canção, o pintor, a assinatura em sua tela, o cineasta, o the end
em sua fita, aquela obra já é morta. Volta à vida cada vez que alguém a
lê, ouve, assiste ou contempla; ao fim do quê, volta a morrer e fica em
detritos a se putrefazerem, em esterco em quem a apreciou.
Depois,
a depender do talento e das habilidades intrínsecos àquele que passou a
carregá-la em potência, em possibilidades, a obra morta poderá ser o
sopro e o substrato para novos engenhos e fazeduras; que também morrerão
ao ser concluídos, reviverão em olhos outros que os do autor etc... ad infinitum. Ou enquanto perdurar a espécie humana neste planeta.
Assim,
quando, por um desafio de uma querida amiga, comecei com o blog lá nos
idos de 2009, eu era uma enorme composteira de tudo que eu lera, ouvira,
assistira, contemplara, vivera nas minhas então 4,2 décadas de
existência. Uma composteira das dimensões de um arranha-céu. Locupleta
de adubo até à sua cobertura.
É
bem verdade que, mesmo antes do blog, eu sempre semeara e cultivara
minha escrita, porém não em grandes canteiros ou jardins ou hortas;
apenas em curtos poemas e cartas a amigos, em pequenos vasinhos às
janelas da cozinha e do banheiro, uma escrita de apartamento, digamos
assim.
Com
o blog, o material de minha composteira passou a fertilizar e a fazer
verdejar mais vastos terrenos. Se não a verdejar bosques úmidos e
frondosas florestas, na certa, a extensas planícies e pradarias de ervas
daninhas. Ao início do blog, eu era um solo tchernozion russo.
Recursos gastos, contudo, ou são seguidos por recursos repostos ou esgotam-se em solo estéril.
Durante
algum tempo - um bom tempo - mantive a reposição de minha composteira
sempre em dia, segui com minha rotina normal de leituras etc. E tudo ia
muito bem. De uns tempos para cá, no entanto, e é difícil saber desde
quando ou precisar as razões que me levaram ao meu atual estado, eu
perdi, em absoluto, todo o meu interesse e o meu poder de concentração
para me lançar a novas leituras, novas músicas, novos filmes e até mesmo
a novos encontros e conversas com velhos amigos.
Difícil
também determinar (e, sinceramente, não me importa muito mais) o que se
deu primeiro. Se alguma disfunção cerebral e cognitiva roubou-me a
concentração e, consequentemente, o interesse por coisas novas, umas vez
que, iniciadas, não consigo mesmo levá-las a cabo (as uvas estão
verdes, desdenha a raposa), ou se a apatia, se o desinteresse por
atualizações - talvez próprio da idade - faz com que eu não consiga mais
me concentrar em nada por muito tempo.
O
fato é que há mais de um ano, talvez dois, eu não concluo um único
livro - eu, que os lia a toque de uns dois por semana. Há uma meia dúzia
ou um pouco mais deles começados e abandonados na estante, no meu
criado-mudo, no armário do banheiro. Um número equivalente de filmes e
de séries iniciados estão à espera de meu retorno na plataforma de
streaming. O toca-CDs há tempos não vê a luz do sol, menos ainda a da
Lua (que é a mesma), largado numa prateleira do guarda-roupas a
compartilhar a naftalina com as traças.
Hoje,
assolado por agressiva e predatória monocultura, sou ex-massapé,
leucêmica terra roxa. Minha escrita perdeu forma, conteúdo, ritmo,
estilo, coesão, coerência, graça e ironia. Não gosto mais dela. Não me
dá mais nenhuma satisfação em seguir com ela. Por que, então, vez ou
outra, ainda insisto, ainda me ponho a fazê-lo?
Por pena. Assalta-me e corrói-me um grande dó ver o blog feito em terra devastada.
Sem um único cravo-de-defunto, sequer, a ornar a lapela de seu terno fúnebre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário