00:52h.
Rubens
tranca a porta do apartamento com duas voltas na fechadura e acende a
luz da sala (lâmpada ainda de filamento, 40 W), chegando da loja de
conveniência com um fardo de latinhas e mais dois latões já gelados,
para se distrair durante o tempo que as latinhas levarão a gelar.
As
duas gatas, mais velhas que ele na escala felina de idade, abrem os
olhos em frestas estreitas, asseguram-se de que é mesmo Rubens e não um
estranho e voltam a dormir - não se animam mais a cheirar curiosas a
sacola que Rubens carrega consigo, como faziam antes; como Rubens,
também perderam a curiosidade pelo mundo e pela vida.
Acomoda
as latinhas no congelador, abre um latão, apaga as luzes da cozinha e
da sala e a atravessa e se instala no escuro da sacada, de frente para
os perenes rios de luzes amareladas que cortam a cidade. Liga o toca-CD
no modo randômico. Edvaldo Santana, Reserva de Alegria (e pra não deixar vazia essa vida de ilusão, vou guardar minha alegria para um dia de aflição...).
Rubens
tornara-se um velho neurastênico e nostálgico. E gosta de tal condição.
De viver de se lembrar. Lembrar dá muito menos trabalho que viver -
pensa Rubens, já no segundo gole do latão. Menos trabalho e bem menos
dores de cabeça e aporrinhações. Apenas lembrar evita más decisões - ou
mesmo boas. Evita ter que decidir algo, o que sempre é um dispêndio de
energia ao qual Rubens não mais se prontifica.
Aliás,
viver de lembrar, não : de relembrar - com o latão já descendo de sua
metade. Que lembrar de algum fato, episódio ou situação vividos, só nos
lembramos uma única vez, a primeira. Da segunda em diante, já não
estamos a nos lembrar do fato, mas da primeira lembrança que tivemos
dele; depois da segunda lembrança, da terceira, da quarta... fotocópias
de fotocópias de fotocópias de um distante original, cada vez mais
esmaecidas.
Enquanto
aguardava na fila da loja de conveniência, acabou por escutar, na TV
suspensa ao alto e ao fundo do caixa, que um atual relatório da ONU
estima a população mundial em 8,5 bilhões de desgraçados para o ano de
2030; nesta mesma data, uma projeção feita a partir do Censo Demográfico
de 2022 indica que seremos 208 milhões de brasileiros.
Secando
o primeiro latão, Rubens se põe a relembrar, então, do Censo do IBGE do
ano de 2000. Rubens acabara de se mudar de cidade. Por falta de vagas
em seu torrão natal, assumira em outro município o cargo conquistado num
concurso de provas e títulos. Cargo cujo exercício - e ele jamais
poderia supor então - o deixaria doente, mentalmente desequilibrado;
julgava, pelo contrário, que o realizaria profissionalmente.
Dá-lhe
uma tristeza agora pensar em como era inocente, puro e besta. Tristeza
maior ainda em ver que os poucos momentos de felicidade que, vez ou
outra, ainda experimentava vinham justamente disso. E vai pegar outro
latão. Aproveita e diminui a temperatura da geladeira - os latões estão a
se ir mais rápido que o previsto.
Instalara-se,
na época, volta a se lembrar Rubens, já a tomar do segundo latão, no
terceiro andar de um prédio de apartamentos com doze deles, cinco
apartamentos por andar, no de nº 34. Um edifício de má fama, próximo à
rodoviária da cidade. Má fama adquirida em outros tempos e que não mais
se justificava, mas fora conservada.
Pelo
porteiro da noite, o seu Guido, Rubens ficou sabendo que a então atual
administradora havia assumido o prédio há uns 10 anos e o limpado dos
maus elementos, alguns marginaizinhos baratos e até moças de vida fácil.
Era um prédio de "família" agora - garantira seu Guido.
-
Então, como sempre, eu só cheguei depois que a festa acabou, né? -
lembra de ter dito a seu Guido, e de ter tirado uma risadinha meio
cúmplice do velho.
O
mesmo seu Guido foi quem transmitira a Rubens, quando ele voltava de
seu expediente noturno, o pedido da "mocinha" do Censo. Explicou que a
"mocinha" estivera no prédio e encontrou vários apartamentos vazios.
Deixou, então, a lista deles com seu Guido e pediu para que seus
ocupantes anotassem uma data e um horário em que pudessem lhe receber
para o recenseamento.
Dando
um outro longo gole no latão, Rubens lembra que era uma sexta-feira, e
que anotara "terça-feira, 14 h" na lista da "mocinha", tarde da semana
em que não trabalhava.
- E essa "mocinha" do Censo, seu Guido? Compensa perder um tempo?
-
Ô - respondeu o aposentado, com uma expressão sacana no rosto, com uma
volúpia adormecida e vã nos olhos, a mesma de um desdentado a desejar um
apetitoso naco de torresmo ou uma espiga de milho.
Rubens
dá outro gole e lembra que lhe eram tempos de juventude, de vigores
físico e hormonal, ou seja, tempos de grande aflição, vivia afoito e
desassossegado à cata de novas conquistas carnais, de novos abates.
Outro gole e já era o segundo latão.
Vai
e volta da cozinha com a primeira lata, mais ou menos gelada ainda, do
primeiro fardo. O modo aleatório do toca-CD pousa em Jair Rodrigues,
Bloco da Solidão (angústia e solidão, um triste adeus em cada mão, lá
vai meu bloco, vai, só desse jeito é que ele sai, na frente sigo eu,
levo o estandarte de um amor, de um amor que se perdeu...).
Como
não lhe seria mesmo de nenhum trabalho adicional - volta Rubens a se
lembrar -, enfim, preparava sempre um café fresco ao fim da tarde e
apenas o adiantaria em algumas horas, passou lá um café em coador de
pano e pôs a assar uns pães de queijo, para receber a "mocinha" do
Censo, que iria sabatiná-lo daí a pouco, caso ela fosse pontual.
Uma
metro e sessenta e poucos, IMC 21, 22, olhos do castanho mais comum,
cabelos idem, acomodados em um rabo de cavalo, próxima talvez aos 25
anos, com margem de erro de mais ou menos dois anos, morena clara, rosto
que capturava e prendia e agradava ao olhar, apesar do nariz levemente
adunco a lhe destoar, ou justamente por causa dele, óculos de armação
acrílica transparente, sapato de salto baixo, preto, fechado, de verniz,
calça social marrom, camisa idem, branca e de mangas longas dobradas à
altura dos pulsos, abotoada até o penúltimo botão, crachá plástico de
identificação a pender-lhe no pescoço em uma grossa fita azul-marinho -
Beatriz dizia o crachá -, e a carregar sob o braço uma pasta retangular
marrom, imitação de couro, com grande zíper que a fechava em toda a sua
largura e da qual ela logo retiraria os formulários a serem preenchidos
com as respostas de Rubens.
E pontualíssima, a "mocinha". Nem 14:05 h, quando batera à porta de Rubens.
Apresentou-se,
mostrou sua identificação de recenseadora oficial do IBGE e foi
convidada a entrar por Rubens - um vampiro às avessas.
Acabando
com a latinha, Rubens se lembra de ter indicado uma banqueta circular
junto à mesa de fórmica amarela para que Beatriz se acomodasse, e ele
fez o mesmo na outra banqueta, do outro lado da mesa, de frente para
ela. Beatriz aceitara o café, declinara, no entanto, do pão de queijo,
não há muito havia almoçado, disse a "mocinha".
Jamais
pude ser considerado um sedutor, um Don Juan, um Casanova - pensa agora
Rubens, começando uma nova lata -, mas já possuí relativos encantos, ou
certa disposição para ser relativamente encantador. Tudo perdido agora,
os relativos encantos e a disposição. Rubens se lembra de que possuia
uma certa determinação, uma convicção quando falava de suas certezas,
uma força, sabe hoje, própria da ignorância, mas que lhe emprestava um
certo brilho aos olhos femininos. A amargura e o cinza-mofo de sua alma,
levava-os apenas ao seu sótão, não os deixava transparecer, havia ainda
algum propósito em pôr-se agradável a algumas pessoas.
- Nome completo e data de nascimento - iniciara Beatriz.
Estado
civil, filhos, há quanto tempo residia naquele endereço, se casa
própria ou alugada, profissão, faixa salarial, quanto banheiros, TVs,
geladeiras, cor, raça, religião, nível de escolaridade...
Tudo
perguntado e tabulado de forma muito profissional, burocrática. Sem
qustionamentos, juízos de valores ou demonstrações de dúvidas ante as
respostas. Até certa altura do questionário.
Manifestara
estranheza, no entanto, revelando uma rachadura em sua carapaça de
formalidade, quando Rubens dissera não possuir telefone em casa. Na
época, não ter telefone em casa era o mesmo que não ter um telefone, os
celulares apenas engatinhavam no país.
Afastando-se
da praxe processual da mera coleta de dados, Beatriz perguntou se o
telefone não lhe fazia falta, se não lhe trazia alguma dificuldade ou
impedimento, se não o deixaria vulnerável e sem socorro numa possível
emergência.
E
fora ali, naquele instante, que Rubens farejara a brecha, a chance que
esperava desde o começo da entrevista, a chance com a qual contava desde
que preparara o café e os pães de queijo; antes até, desde que o seu
Guido lhe falara da "mocinha" do Censo.
-
Não, não mesmo - lembra Rubens de ter dito, a caminho da geladeira para
mais uma lata -, nunca me fez falta ou precisão, nunca me trouxe nenhum
dano ou me deixou em apuros.
- Sei lá, acho difícil de imaginar alguém sem um telefone, até de acreditar - Beatriz já a começar a recolher os formulários.
- Vamos fazer o seguinte, então - Rubens já armando o alçapão -, vamos fazer uma aposta.
- Uma aposta ? - e poderia ser até pretensão, mas Rubens pareceu ver um sorrisinho a marejar em Beatriz.
- Isso, uma aposta. Quer mais café, quem sabe um pão de queijo agora?
Beatriz aceitara as duas ofertas.
-
É - Rubens voltando da cozinha com a xícara de Beatriz reabastecida e
um pratinho com dois pães de queijo.-, vamos apostar que, mesmo sem ter
telefone em casa, eu consigo ligar pra você no dia e na hora em que eu
quiser.
Beatriz
riu, por pouco não engasgando com o pão de queijo. E como diz um amigo
de Rubens, fazer uma mulher rir é colocar a bola na boca da caçapa,
depois é só empurrar pra dentro.
Cantada
das mais horríveis e idiotas - lembra agora Rubens de ter pensado na
ocasião, assim que a lançou. Mas acontece que as pessoas, em sua
maioria, não são grandes poços de inteligência, se lhes passam uma
cantada mais refinada, mais elaborada, corre-se o sério e provável risco
delas nem perceberem que é uma cantada. Se algum dia alguém conseguiu a
proeza e a façanha de inventar uma cantada inteligente, Rubens nunca
chegou a tomar conhecimento dela. Ou até chegou a tomar, mas também não a
reconhecera como uma cantada. Uma
cantada deve ser uma declaração clara e inequívoca das intenções do
emissor em levar o receptor para a cama. Por isso, quanto mais ridícula,
maior a chance de funcionar. E a de Rubens funcionara.
- Sei, sei... - dissera Beatriz
-
É, se eu precisar ligar pra você para que acredite em mim, vou dar meu
jeito, vou me desdobrar e ligar. Tudo para que nenhuma dúvida seja
levantada a respeito de minhas respostas, tudo pela credibilidade dos
dados que informei ao IBGE.
- Tá certo... e Beatriz riu, de novo.
Beatriz
terminou o café e o pão de queijo, agradeceu a boa vontade e a
disponibilidade de Rubens em receber um agente do Censo e responder ao
formulário. - Muita gente - dissera Beatriz - foge de nós, não gosta,
acho que se sentem invadidos.
Guardou o formulário na pasta, fechou o zíper e se levantou.
- Estamos apostados, então? - lembra agora Rubens de ter insistido.
- Você não é fácil, não, né?
Rubens
empurrara, então, um caderno aberto numa folha em branco e uma caneta
para Beatriz. Ela ajustou os óculos sobre o nariz e, canhota, anotou :
"Beatriz, 3656 - XXXX".
Beatriz ainda tinha mais dois apartamentos para visitar no prédio, tinha uma cota diária a cumprir. Despediu-se
Isso fora numa terça-feira, lembra Rubens, e vai buscar outra lata, deixando Belchior no toca-CD, Coração Selvagem (guarde
uma frase pra mim, dentro da usa canção, esconda um beijo pra mim, sob
as dobras do blusão, eu quero um gole de cerveja no seu copo, no seu
colo e nesse bar).
Passaram-se
a quarta, a quinta... na sexta, então, perto das sete da noite, antes
de seu expediente noturno, Rubens foi a um orelhão e, munido de um
cartão telefônico ilustrado com uma pintura meio impressionista de um
saxofone (havia cartões com motivos bem bonitos, eram altamente
colecionáveis na época), ligou para o número que Beatriz lhe dera.
Contando, é claro, com a chance dele ser falso, ou não existir.
Uma mulher atendeu - lembra Rubens. Perguntou quem ele era, com quem desejava falar.
-
E não é que você conseguiu me ligar mesmo? - Beatriz, alguns segundos
após a mulher, uma tia de Beatriz, na casa de quem ela estava instalada
provisoriamente, enquanto durasse o seu contrato temporário de
recenseadora do IBGE, ter deixado o gancho do telefone. Beatriz morava
em uma cidade vizinha, a nem vinte quilômetros.
-
Não te falei? Que se eu precisasse, que se eu quisesse muito falar com
alguém, que se eu quisesse muito mesmo falar com alguém, a falta de um
telefone em casa não me impediria?
- E queria muito mesmo falar comigo, é?
- Tô ligando, não tô?
- E por que precisa muito falar comigo?
- Questão de justiça, de equilíbrio cósmico, até.
Do outro lado da linha, Beatriz riu. A bola cada vez mais na boca da caçapa, pensara Rubens.
-
Verdade - seguiu Rubens -, você sabe tudo sobre mim, onde trabalho, o
quanto ganho, se tenho filhos, onde moro... e não sei nada de você.
- Sei... então, parece que você ganhou a aposta.
- Ganhei. Me comprometi e cumpri com minha parte. Vai honra a sua parte agora?
- E qual seria a minha parte?
- Pagar a aposta perdida.
- E estabelecemos algum pagamento por ela?
-
Claro. Caso eu vencessse, você concordou em ir no meu apartamento
amanhã, sábado à noite, pra gente conversar, jantar, assistir a um
filme...
- Lembro disso, não...
- Tão novinha e já tão esquecida...
Outra risada de Beatriz.
- Mas se eu perdi, tenho que pagar, não é?
- Amanhã, então, 8 horas da noite?
- Pode ser.
- Pode ser ou certeza?
- Certeza.
- Você sabe o endereço.
Ainda
havia o risco - lembra Rubens de ter ponderado - dela não aparecer. Ela
poderia alegar um imprevisto e, como Rubens não tinha telefone em casa,
não tinha podido avisá-lo.
Não houve imprevisto, sábado à noite.
Teve Beatriz.
Teve jantar, um peixe, um curimbatá assado, recheado com farofa, pimentão, cebola, tomate, cheiro verde.
Teve vinho branco - vinho Canção.
Teve buceta e vinho tinto, depois.
Surpreendentemente, teve cu também, na sequência.
Beatriz não fugia à luta. E o pau de Rubens estava sempre pronto pra ela.
Tiveram
outras e outras vezes depois da primeira. Ao longo dos seguintes dois
ou três meses, Beatriz passara a se alternar em seus fins de semana : um
passava com Rubens, no outro, visitava seus pais.
Encerrado
o Censo de 2000 e, consequentemente, o vínculo empregatício de Beatriz
com o IBGE, ela deixou a casa da tia e tornou à sua cidade. Depois
disso, ainda estiveram juntos - lembra Rubens - por algumas vezes,
porém, em ocasiões cada vez mais espaçadas.
Até
que um dia, uns quatro ou cinco meses depois de tudo começado, Rubens
mal acabara de encher o cu de Beatriz com toda a porra acumulada da
semana, pau ainda meia bomba, lustroso de gosmas e secreções e
rescendendo a odores entre o excitante e o asqueroso, ouviu de Beatriz
que ela acabara de reatar com um antigo namorado, que estavam pensando
em coisa séria e que seria melhor que não se vissem mais.
Se
Beatriz reatara mesmo com um antigo namorado ou se estava a inventar
aquilo como uma forma mais gentil, quem sabe menos dolorosa e por que
não dizer ingrata de dispensar Rubens, ao próprio pouco importou. Melhor
ela a romper do que ele.
-
Tudo bem - dissera Rubens -, mas a gente tem o resto da noite dessa
sexta, o dia de amanhã inteiro e a manhã de domingo ainda todos pela
frente, certo?
- Claro - dissera Beatriz - e vai lavar esse pau vai, estou com umas ideias aqui.
Rubens levanta - Alcione no toca-CD, Ou Ela ou Eu (ou ela ou eu, é a resposta que eu mais gostaria de ter, só não faço a pergunta, pelo medo da falta que você vai fazer) - e vai pegar outra no congelador. No meio do caminho, muda de ideia. Toma o rumo do banheiro.
- Vou tocar uma punheta pra Beatriz. Pro cuzinho da Beatriz.
O cuzinho mais doce em que Rubens já metera a língua.
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