Como
nunca a tive (nasci sem ela) e adquiri-la não é questão de vontade (que
também nunca tive) ou de argumentos que possam me convencer a
abraçá-la, não entendo nem nunca entenderei a fé religiosa.
Nada
contra quem a possui e a cultiva. Nada contra, que fique bem claro, que
a exerça como forma de um alento e um conforto íntimo e pessoal; não
como uma forma de comércio ou de controle.
Como disse Frank Sinatra, carcamano e mafioso das antigas, "Não
sou insensível à ideia de que o homem deva buscar algum tipo de fé;
basicamente, sou a favor de qualquer coisa que faça você dormir à noite,
seja uma prece, tranquilizantes, ou uma garrafa de Jack Daniels".
Como
não a tenho, a fé, não sou capaz de entendê-la (talvez o problema
esteja comigo). Por conseguinte, não me entra na cabeça de jeito nenhum o
tal do romeiro, o radical da fé, o extrema-crente.
O
sujeito deixa o conforto de seu lar e se põe a caminhar por quilômetros
e quilômetros, por léguas e léguas tiranas, submetendo-se,
voluntariamente, a privações e martírios, geralmente em direção a alguma
meca religiosa, a algum santuário, na tentativa de ganhar a atenção de
Deus, para ver se comove e sensibiliza o Todo-Poderoso no sentido de que
Ele o socorra em suas necessidades e aflições, na esperança de receber
alguma graça.
Porra!
Como já disse, não acredito em nenhum deus, de nenhuma religião
existente, extinta ou vindoura, mas se fosse para crer em um, não seria
nesse deus cristão. Não deveria bastar apenas que o fiel fosse um
ficha-limpa nos arquivos do Céu? Levar uma vida honesta, ordeira, não
querer nem causar, deliberadamente, o mal a outrem etc para ser
merecedor de uma graça divina? Ou, melhor ainda, antes ser poupado de
sofrimentos que o façam implorar por alívio a Deus? E por que o fiel tem
que pedir, gritar a Deus sobre suas agonias? Onisciente e
misericordioso que O dizem, não deveria Deus perceber as angústias de
seus filhos e mitigá-las por iniciativa própria?
Precisa,
além de tudo, o fiel se estropiar, se escangalhar, para que o Pai se
digne a percebê-lo e a olhá-lo, ainda meio que de esguelha, de rabo de
olho?
Nesta
semana, algumas das principais rodovias do país, em especial a Rodovia
Presidente Dutra, a Via Dutra para os íntimos, estão tomadas pela
presença maciça de romeiros. Crentes católicos rastejando em direção à
Basílica de Aparecida do Norte para o feriado da Padroeira, do dia
12/10.
A
Basílica de Aparecida do Norte é a segunda maior igreja do mundo, perde
apenas - e por pouco - para a Basílica do Vaticano, porém, se
considerarmos toda a área cercada em volta da Basílica de Aparecida, a
metragem é maior que a do Estado do Vaticano.
Temos
as maiores igrejas e os maiores estádios de futebol do planeta. Sem
dúvida, isso diz muito de nós, e muito nos depõem contra.
Em
média, são cinco dias de peregrinação até Aparecida do Norte, e
aproximadamente de 40 a 50 quilômetros diários de caminhada. Muitas e na
maioria das vezes, os fiéis se lançam à estrada ao acaso da sorte, sem
nenhuma estrutura de apoio e expostos aos vários riscos inerentes a uma
das rodovias mais movimentadas e perigosas do país.
Há
três dias, dois atropelamentos envolvendo grupos de romeiros foram
registrados pela Polícia Rodoviária Federal. Romeiros que caminhavam
pelas bordas da rodovia, à noite, sem nenhuma peça fosforescente ou
refletiva em suas indumentárias, contando apenas com a vontade de Deus.
Em
um dos sinistros, por volta das 20h, na região da cidade de Santa
Isabel, um grupo de sete romeiros foi atingido por um ônibus
interestadual, cujo motorista, submetido depois e aprovado no teste do
bafômetro, não os viu dentro da noite escura. Um dos romeiros morreu,
foi se encontrar - ou não - com o Criador antes do que pensara.
No
outro, perto da meia-noite, na região de Pindamonhangaba, um idoso de
65 anos, trajando roupas escuras, foi abalroado por um automóvel e
também foi ter, teoricamente, com o Pai.
E
sabem do que mais? Deus, que tudo vê, tudo sabe e tudo pode, e que,
portanto, estava a tudo ver, a tudo saber e que tudo poderia ter feito,
nem se importou!
Impossível
não me lembrar, não ter a memória remetida a um poema de Manuel
Bandeira, o meu modernista preferido, chamado Conto Cruel.
Conto Cruel
A uremia não o deixava dormir. A filha deu uma injeção de sedol.
— Papai verá que vai dormir.
O pai aquietou-se e esperou. Dez minutos... Quinze minutos... Vinte minutos... Quem disse que o sono chegava? Então, ele implorou chorando:
— Meu Jesus-Cristinho!
Mas Jesus-Cristinho nem se incomodou.
— Papai verá que vai dormir.
O pai aquietou-se e esperou. Dez minutos... Quinze minutos... Vinte minutos... Quem disse que o sono chegava? Então, ele implorou chorando:
— Meu Jesus-Cristinho!
Mas Jesus-Cristinho nem se incomodou.
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