Na postagem anterior, Carta (meia)Bomba,
acerca do curioso caso do diplomata brasileiro que recebeu o desenho de
um caralho voador pelos Correios e sentiu-se ameaçado, digo um pouco do
uso não apenas exagerado, como também totalmente indevido da máquina
pública para resolver questões pessoais, pendengas que mal passam perto
de serem verdadeiras questões, limitando-se tão-somente a orgulhos e
vaidades feridos. Melindres, pirracinhas, mimimis. O cara recebe o
desenho de um caralho alado e mobiliza todo o Itamaraty e a PF em seu
socorro.
Então,
Mr. F, macho, cervejeiro e leitor das antigas do Marreta, comentou
sobre um diretor de uma escola técnica no Tocantins, um doce de pessoa,
que certo dia recebera uma homenagem por escrito em uma das paredes da
escola : Morra, Fulano!
Pronto.
Haviam mexido com o rei. O sujeito acionou a PF para realizar perícia
grafotécnica em dezenas de pessoas e descobrir e punir o responsável.
São
pessoas, o diplomata do caralho voador e esse diretor, que se
consideram intocáveis, irrepreensíveis, imunes a quaisquer críticas ou
observações. São uns cuzões, pois sim. Com egos infinitamente maiores
que seus paus de anjinhos barrocos.
Vai
daí que o comentário do Mr. F, trouxe-me à lembrança um outro caso
muito parecido, de outra história do uso do aparato público para uma
vendeta pessoal. Engraçadíssimo.
O
incidente se deu em 1984, dois anos antes de eu ingressar como calouro
no curso de graduação de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (a Filô) da USP de Ribeirão Preto, porém, o acontecido ainda se
fazia vivo e presente nas memórias daqueles que o viveram.
O
relato que vos exporei agora, replico-o da mesma forma com que me foi
passado, não cabendo a mim levantar dúvidas sobre a sua veracidade,
menos ainda aboná-la.
Havia
lá um professor de Física, um peruano excomungado de nome de batismo
José Henrique Rodas Duran, ou simplemente, o Rodas. Rodas lecionava
Física Teórica I para todas as turmas iniciais do curso e promovia
reprovações em massa a cada fim de semestre, massacres, verdadeiros
genocídios, raros eram os sobreviventes de suas chacinas, era sangue de
caneta Bic para todos os lados. Rodas não apenas reprovava no atacado e
no varejo : ele sentia incomensurável prazer naquilo, proporcionava-lhe
orgasmos anais múltiplos. A baba peçonhenta, densa, viscosa e brilhante,
escorria-lhe pelos cantos da boca a cada aluno deixado em dependência, a
famosa DP - que não é a dos filmes pornô.
A
dar-lhes uma vaga ideia do sujeito, em 1986, junto conosco, os
primeiranistas, estavam a cursar Física I outros catorze veteranos. Dois
deles, inclusive, alunos do 4º ano, prestes a se graduarem, com todos
os seus créditos cumpridos, e de DP apenas com o Rodas; era a quarta vez
que serviam ao sadismo do peruano.
Chegando,
enfim, ao infausto, numa bela manhã do ano de 1984, em um muro de uma
residência localizada no começo da Avenida do Café, apareceu pichado em
letras garrafais de spray : "COMI O RODAS!"
A
Avenida do Café é uma via expressa com aproximadamente quatro
quilômetros de extensão, iniciando-se no terminal de ônibus da cidade e
desembocando no campus da USP, sendo, portanto, trajeto dos ônibus que
levavam os estudantes à universidade. A pichação se dera, pois, em local
estratégico. Naquele dia, centenas de estudantes ficaram sabendo que
alguém tinha comido a roda do Rodas.
O
destemido comedor do Rodas não se deteve no primeiro muro. De tempos em
tempos, a cada três ou quatro dias, um novo muro, sempre alguns
quarteirões à frente do anterior, cada vez mais próximo do campus da
USP, aparecia pichado : "COMI O RODAS!".
Como se diz hoje em dia, o assunto viralizou, foi para os trending topics das
fofocas da USP. Tanto no departamento de Química, onde Rodas cometia
suas barbaridades, quanto nos outros do campus, no de Farmácia, no de
Odonto, no de Enfermagem etc, afinal, os ônibus transportavam alunos de
todos eles.
O assunto ganhou as bocas desocupadas e as más-línguas. Não se comentava e se festejava outra coisa.
Claro
que acabou por chegar também ao conhecimento do Rodas, que ficara já
ressabiado, com a pulga atrás da orelha e em estado de alerta em relação
àquela pichação itinerante, cada vez mais próxima e na iminência de
alcançar o seu local de trabalho.
E
não deu outra. Foi apenas questão de tempo. E, claro, de torcida de
todos o que acompanhavam o caso. De muro em muro, a pichação adentrou as
verdes matas da USP e estampou-se bem na parede da fachada do setor de
Física da faculdade, bem acima da porta principal, que dava acesso ao
prédio : "COMI O RODAS!".
Aquilo
fora a gota de orvalho a sobejar as bordas da cacimba. Fora a
confirmação de que o despregueado Rodas da pichação era mesmo ele.
Porque, até então, poderia ser qualquer outro Rodas, uma vez que há
tantos com esse sobrenome no Brasil, certo?
Muito
mais que os muros da avenida do Café, sua honra ancestral andina
acabara de ser pichada, conspurcada. Aleivosias e máculas pintadas a
spray em seus brios e hombridade. Não poderia deixar passar incólume
aquela afronta à sua dignidade, aquele achincalho à sua masculinidade,
aquela chaga aberta e exposta publicamente em sua dignidade.
Abandonem-se,
pois, todas as pesquisas! Suspendam-se, pois, todas as atividades
letivas! Fechem-se, pois, os laboratórios, a biblioteca e o refeitório!
Comeram o Rodas! E o pior : o enrabador dera com a língua nos dentes.
Nada era mais importante e urgente naquele momento. Mesmo a campanha
pelas Diretas Já, ocorrida no mesmo ano, ficara pálida frente aquilo.
Contam
que Rodas, então, acionou o Conselho de Diretores, a Comissão de Ética,
a polícia do campus, a guarda pessoal do reitor e o caralho a quatro.
Enfim,
foi marcada uma reunião do Conselho dos Diretores da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, em cujas dependências ocorreram os atos de
vandalismo e injúria. Hoje, dado que Rodas é peruano, acrescentar-se-ia
também a acusação de xenofobia.
Porém, os trâmites e os desenrolares das investigações não correriam tão bem e favoráveis a Rodas como ele pode ter pensado.
A
compor o corpo do Conselho de Diretores, havia lá o Geraldinho,
professor de Cálculo, um cara gente finíssima. Espirituoso e gozador que
só ele. Ao longo de todo o imbróglio, Geraldinho não se encontrava na
faculdade, nem mesmo no país. Estava a participar de algum evento
acadêmico no exterior. E calhou do retorno de Geraldinho se dar
justamente no dia da tal reunião, no dia em que se decidiria pelo início
das investigações à cata do responsável, bem como sobre as punições e
sanções passíveis de serem aplicadas a ele, quando descoberto.
Contam
que Geraldinho chegou ao recinto já quase ao início dos trabalhos da
mesa, com a maioria dos integrantes já a tomar seus lugares e a revisar e
discutir a pauta. Mais perdido que broxa em puteiro, Geraldinho
perguntou qual era o motivo daquela convocação tão urgente do Conselho.
Quando
inteirado do objeto da reunião, Geraldinho, dono daquelas vozes de tom
naturalmente alto e tonitruante, daquelas que se espalham e tomam de
assalto todo o ambiente, comentou : "poxa, que cara distraído esse Rodas, comeram ele e ele nem viu quem foi?"
Pãããããta que o pariu!!!! Pura verdade!
Contam
que a risadaiada da mesa diretora foi geral. Geraldinho,
inadvertidamente, havia posto fim a qualquer possibilidade de uma
discussão séria a respeito da questão. A reunião até acabou por ser
conduzida, finalizada, registrada em ata etc, cumpriu-se com a
formalidade, enfim. Mas o tempo todo com a fala de Geraldinho a circular
pela cabeça dos diretores. E todos com risinhos nos cantos das bocas.
Até
hoje não se sabe quem comeu o Rodas. A questão entrou para o rol dos
grandes mistérios da História. Mais insondável que a identidade de Jack,
o Estripador.
Descobriu-se
quem matou Odete Roitman. Descobriu-se até quem desenhou caralhinhos
voadores na parede do banheiro do contínuo Noronha e na carta enviada ao
diplomata Cristiano Eber.
Mas nem Sherlock Holmes aliado a Hercule Poirot e ao Batman foram capazes de trazer à luz a identidade do enrabador do Rodas.
E
todos os reprovados por Rodas na época torceram mesmo para que ele
nunca fosse descoberto. Tinham-no na categoria de um herói, de um
justiceiro que vingara a todos que um dia levaram pau na matéria de
Rodas : deu-lhe pau!
Que
tenha vida longa e próspera, o anônimo enrabador. Ou, se já falecido,
que esteja agora entre valquírias e brunildas peitudas e canecas
gigantes de mulso e hidromel no paraíso do Valhalla, destinado aos
guerreiros de grandes feitos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário