Dizem,
os entendidos do assunto, que a cerveja comercial brasileira não pode
ser classificada como boa ou ruim, uma vez que nem mesmo cerveja a rigor
ela é. Pois os fabricantes tem a permissão legal para produzi-la com
até 50% de cereais não maltados; o milho, no caso.
Proporção
que, mesmo obediente e observante às nossas legislações, infringe
gravemente a 1ª e Única Lei da Carta Magna Cervejeira, conhecida como a
Lei da Pureza, promulgada pelo duque Guilherme IV da Baviera, em 1516, e
que é categórica, pétrea e inflexível : a cerveja deve ser fabricada
apenas com os seguintes ingredientes : água, malte de cevada e lúpulo.
Pergunte
para um italiano raiz se ele considera que pizza de chocolate seja
pizza. O alemão, o holandês, o belga, o tcheco etc devem sentir algo
parecido em relação a uma "cerveja" de milho.
Portanto,
apenas recentemente, há cerca de uns 10 anos, nós, brasileiros comuns e
não entendidos (ainda bem) passamos a ter contato com e fácil acesso à
verdadeira cerveja, chamada por aqui de puro malte.
Se
é cerveja, é puro malte. Ou não é uma cerveja a rigor. É parecido com
estar escrito (e está) "este produto não tem colesterol" no rótulo do
óleo de soja ou de qualquer outro óleo de origem vegetal. Mas enfim...
Bebíamos
cerveja que não era cerveja e éramos felizes em nossa ignorância, muito
felizes, como só mesmo os ignorantes conseguem ser. Divertíamo-nos de
montão. Muito mais do que hoje.
Não
é o meu caso, mas hoje têm muitos por aí que cospem no copo em que
beberam, que dizem não mais conseguir tomar cerveja que não seja puro
malte, dizem que aquela boa e velha cerveja de milho, que tantas
alegrias já lhes proporcionou, hoje lhes é intragável, tem gosto de
papelão, retrogosto metálico e sulfuroso etc.
E
quando um cara que já entornou muita Malte 90, muita Polar etc começa a
falar em retrogosto, saia de perto : logo, logo, ele vai começar a
querer pegar na sua rola.
Fenômeno
muito semelhante aconteceu com o vinho no Brasil. Até o início da
década de 2000, o que nós tomávamos por vinho provocaria um acesso de
fúria em qualquer francês, português, ou mesmo argentino ou chileno. Ou
um acesso de riso. Ou achariam que estávamos a lhes pregar uma peça.
Nossos
vinhos eram chamados de coloniais, de mesa, licoroso, suave. E não eram
confeccionados a partir de uma variedade específica de uva vinífera,
mas sim de uma mistureba de uvas comuns. Vinhos que deixavam nossas
línguas tingidas de roxo por uns três dias. Alguns, chegavam a conferir
uma coloração verde-escura (resultado da mistura do roxo com o marrom)
às nossas fezes.
Marcas
como Sangue de Boi, Dom Bosco, Palmeiras, Chapinha, Chalise e Canção
faziam a nossa festa e a nossa alegria. No meu caso, principalmente o
Canção, apresentado-me, salvo engano, pelo Rubão, um quase sogro do meu
amigo e corno Fernandão, isso lá ainda na década de 1990.
Bebíamos
vinho que não era, a rigor, vinho, e nos esbaldávamos. Festejávamos e
divertíamo-nos muito mais do que hoje em dia, que temos acesso a vinhos
de melhores cepas. O bom e velho Canção cumpria com seu papel muito
melhor que, hoje, um Casillero del Diablo, por exemplo.
Claro
que também nos divertíamos mais porque eram outros tempos, éramos mais
jovens, não tínhamos filhos, éramos escravos de muito menos preocupações
e obrigações.
Mas não era só isso. Tomávamos o pseudovinho sem nos atentar a rótulos, teores alcoólicos, ano da safra, procedência, taninos e terroir. Aliás, se um cara que já emborcou Canção a ponto de sair pelo nariz, vier lhe falar de terroir, saia de perto : logo, logo, ele vai lhe pedir um fio-terra.
E nós não bebíamos : nós entornávamos vinho barato. Com um único, honesto e legítimo propósito : embebedarmo-nos.
Hoje,
não. Quando dois, três ou mais amigos se reúnem, nem dizem mais que é
para beber, e sim para experimentar uns vinhos. O vinho virou o
propósito central da reunião, e não mais o encontro per si, o
encontro para rever os amigos e ficar bebaço. O vinho virou o centro das
atenções. A cada garrafa desarrolhada, tecem-se considerações a
respeito do tal vinho. Antes, abríamos, bebíamos, conversávamos, ríamos e
pronto. Hoje, muitos guardam até as rolhas como recordação. O vinho
acabou por ser transformado em uma espécie de religião, de culto. E nada
me diverte menos que uma religião.
Abaixo,
mais uma foto de quando eu não tinha o olhar lacrimoso, que hoje trago e
tenho. Deve ser 2007, 2008, por aí. Um encontro regado a vinho Canção
seco, bom e barato. Sobre a mesa, já uma trinca de garrafas esvaziadas.
E, no mínimo, outra trinca ainda seria drenada.
Tivemos,
obrigo-me ao registro, uma pequena - pequena mesmo - ajuda de nossas
esposas nessa empreitada. Elas não aparecem na foto. A minha está atrás
de mim, é possível ver parte de seu ombro e braço atrás e à altura do
meu queixo, assim como uma de suas mãos no encosto da minha cadeira. A
do Fernandão está bem ao lado dele na foto original, mas tomei a
liberdade de removê-la digitalmente da imagem. Jamais eu cometeria a
infâmia de revelar o rosto de duas senhoras sérias, honestas e decentes
aqui nas páginas desse antro virtual que é o Marreta.
E
o Fernandão? Bebe Canção até hoje? Não... desgraçadamente, não... Só
vinhos argentinos, chilenos, do Napa Valley, quiçá da Borgonha.
Mas
é como diz o sábio e filósofo Tiririca : ele é corno, mas é meu amigo,
queima a arruela, mas é meu amigo, é gourmet, mas é meu amigo, é
sommelier, mas é meu amigo, ele pode ter defeito, mas é meu amigo.
E aí, Fernandão, que vinho que é bom?
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