quinta-feira, 27 de junho de 2024

A Desejada Invisibilidade

O chargista - o bom chargista, claro - é um sujeito dotado de incríveis poderes de síntese e concisão. É capaz de ser sucinto e abrangente ao mesmo tempo. Eu, que falo, falo, e não falo porra nenhuma, morro de inveja desses caras.

Elevando à enésima potência a máxima de que "uma imagem vale mais do que mil palavras", eles, normalmente, em três quadrinhos sequenciais de uma tirinha de jornal, conseguem imprimir uma carga e um conteúdo que outros, mais falastrões e verborrágicos, talvez não tão bem colocassem em milhares e milhares de fotogramas de uma película cinematográfica.

Na verdade, às vezes, quando têm lampejos de genuína genialidade, nem mesmo dos tradicionais três quadrinhos sequenciais, eles precisam. Em felizes e aventuradas vezes, um único lhes basta.
Como é o caso da tirinha abaixo, do chargista e cartunista Caco Galhardo, que nem chega a ser um de meus prediletos, mas que, nesse caso, acertou-me diretamente na linha de cintura, no fígado, e na ponta do queixo depois, com um cruzado de direita.


A tirinha é antiga, 2012 ou 2013, mas longe de ser datada, no sentido de obsoleta ou anacrônica. Pelo contrária, ela tem um caráter atemporal. Li a tirinha no meu então local de trabalho, quando as escolas ainda mantinham assinaturas de jornais impressos, a Folha de São Paulo, no caso.
Não tive dúvidas : surrupiei-a.
Depois, ela sumiu. Perdi-a. Tentei recuperá-la pela internet algumas vezes. Sempre fracassei. Porém, de tempos em tempos, a lembrança dela se fazia recorrente em minha cabeça.

Hoje, pouco antes de sair para o trabalho, fui à estante à cata de um livro que pudesse deixar para o meu filho, já em período de férias escolares, começar a ler; praticar um pouco a leitura e não ficar vidrado apenas na TV e no videogame.
Peguei lá uma edição de bolso de O Homem Bicentenário (editora L&PM), de Isaac Asimov, inclusive adaptado para o cinema, com Robin Williams na pele metálica do protagonista.

Comecei a folheá-lo e qual não foi a minha surpresa em achar a tirinha há tempos perdida por entre suas páginas, a lhe servir de marcador?
Deixei o livro com o meu filho, fiz-lhe as recomendações de praxe (que sei que ele não acatará), lembrei-o de suas tarefas na casa (que ele se esquecerá) e pus o pé à rua. Levei a tirinha comigo. Agora, não mais a perco. Estou pensando até em reforçar o seu verso colando nele uma tira de um papel sulfite mais grosso, colorido (laranja ou azul) - minha esposa tem dessas folhas mais "frescas" - e plastificá-la. Transformá-la oficialmente num marcador de livros.

Gostei tanto dessa tirinha que, à época, até a transfigurei (espero não tê-la desfigurado) em um poema : O Poema da Desejada Invisibilidade, publicado lá nos primórdios do Marreta e que, agora, republico.

O Poema da Desejada Invisibilidade
 
Estão, o Coisa e a Mulher Invisível, na mesa de um bar. 
Totalmente porrados, hálitos rançosos, 
Copos rançosos de digitais e labiais, luz de 25 W, 
Paredes lacrimejantes de mofo; 
Porrados, deprimidos da vida, 
Melhor: deprimidos de vida. 
Estão numa mesa de bar, o Coisa e a Mulher Invisível.  

O Coisa: “Tá lá, porra, no dicionário Marvel, que eu dou conta de 75 toneladas”

Pausa, lenta pausa, para um gole, grande gole, de ambos.

Continua, o Coisa: “Mas, vez em quando, quase sempre ultimamente, 
fica tudo tão pesado que eu arrio, com as 4 patas, 
desmonto, mesmo” 

Outra pausa, para um bater de cinzas do charuto no cinzeiro; 
Volutas de fumo rodopiam, abraçam e dançam com a face paciente 
Tolerante, resignada, da Mulher Invisível.  

Ainda, o Coisa: “Sabe, às vezes, tenho vontade de sumir”
A Mulher Invisível: “Esquece! Bobagem... sumir também não adianta!”. 

(A cena se fecha num superclose, num fantasticzoom 
do cruzar de dois fastientos olhares, basáltico e etéreo-vaporoso. 
A cena se fecha num superclose, num fantasticzoom 
do escapar, do vazar, do erodir de duas distintas lágrimas: 
de obsidiana, uma, capaz de riscar o quartzo, 
de cristal corrediço, a outra, com igual índice de refração do ar.)

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