sábado, 8 de junho de 2024

Pequeno Conto Noturno (100)

01:23h. Uma loja de conveniência de um posto de combustíveis qualquer. Todas são o perfeito carimbo uma das outras. São o mais próximo dos impessoais shoppings centers que Rubens se permite frequentar. Hoje, ou calculara mal a quantidade usual de bebida na geladeira, ou mal a voracidade de sua sede, ou mal a insaciedade de sua alma. Ou as três coisas.

- Ora, ora... quem é vivo sempre aparece.

Mesmo de costas, Rubens identifica a voz de Yrina - e como poderia não? Mesmo ele de costas, mesmo ele projetado em mero contorno pela luz saída do freezer da loja, que o atinge pela frente, Yrina seria incapaz de não reconhecer a silhueta de Rubens. Seca, encarquilhada, como se a sina de Atlas tivesse lhe sido feita em maldição.

- Ou não consegue escapar e ficar oculto tempo suficiente.
- Tá azedo, é?
- Se eu estivesse um doce de pessoa, como teria certeza de que era eu mesmo?

Sorriem, ambos. Ele de canto de boca, ela, até com as orelhas.
Abraçam-se.

- Sumiu, velhinho. Abandonou a noite, foi?
- A noite, não; as ruas.
- Eu posso estar enganada, é uma chance das mais ínfimas, mas posso estar enganada, ou não foi você que disse uma vez que beber sozinho, entre quatro paredes, era um convite ou a antessala, sei lá, para a loucura, ou algo parecido.
- Deve ter sido algo parecido, e não fui eu, foi Bukowski.
- Bukowski... você e ele são dois velhos sujos, safados, intratáveis, misantropos. Sabe qual a diferença básica entre vocês?
- Talento?
- Em tipo, talvez; em quantidade, não, e não venha querer confetes a essa hora. A diferença é que ele teve coragem de viver de acordo e acreditando no talento que tinha, não o deixou guardado nas gavetas, nas postas-restantes do medo.
- Coragem, ou falta de percepção dos riscos a que se expôs para isso?
- Ou cagando e andando para eles?
- Hum, é um meio-termo que eu posso aceitar.
- Não é um meio-termo.
- Ou talvez porque fosse a única maneira que ele conseguisse viver, que gostasse de se foder volta e meia.
- Agora, acho que sou eu que posso aceitar esse meio-termo.
- Não é um meio-termo.
- Filho da puta!
- Eu tô aqui porque comecei a escrever uma carta pro Margá e a cerveja acabou e a carta não.
- Ainda manda cartas?
- Não. Mas você sabe que eu sempre escrevi duas categorias de carta, as para serem remetidas e as para não. Essa de hoje é da segunda categoria. Para ficar em meus arquivos. Em minha biblioteca do Sonhar de todos os livros imaginados e nunca publicados. E você, faz o que a essa hora pelas ruas?
- Outro encontro frustante, outra barca furada.
- Há! Há! Há! Quando é que você vai desistir desses tiros de festim no escuro?
- Quando você ficar comigo.
- Vai comprar alguma coisa aqui? - tartamudeia Rubens - Minha cerveja tá esquentando.
- Eu ia tomar um café, mas vou tomar umas também. Não essa merda que você toma, claro.
- Café, se quiser, eu posso fazer depois.
- Tá me convidando pro seu apartamento, é?
- Aceitando seu convite, na verdade.
- Velho escroto! Vai ser bom matar saudades do seu covil, das suas gatas.
- Morreram ano passado, as duas, num intervalo de poucos meses entre elas.
- Não vai adotar mais duas, não?
- Dessa vez, eu que morreria antes delas.
- Foda, né?

Rubens abre a porta do apartamento, acende as luzes - ainda as de filamento, ele comprou um estoque imenso quando elas começaram a ser retiradas do mercado, gosta da luz amarela delas, quente, não da luz fria, hospitalar, necrotérica, até, das de LED. Abre as janelas sem cortina, só um lençol velho preso pelos cantos, para barrar a luz da tarde. Pega uma lata para si, outra para Yrina e põe as outras no congelador. Na sala, Yrina se senta ao chão, o mesmo tapete há tempos sem felpas e sem cor, recosta-se na borda do sofá. Rubens liga o toca-CD, Oswaldo Montenegro. E senta-se ao lado dela.

- O mesmo toca-CD ainda?
- Se ainda funciona...

"pela marca que nos deixa a ausência de som, que emana das estrelas, pela falta que nos faz a nossa própria luz a nos orientar..."

- Sabe que até para mim o apartamento parece mais triste sem as gatinhas? Uma delas vinha sempre no meu colo. Sente muita saudades delas?
- Mais do que qualquer mulher que já tenha passado por aqui.
- Tomar no cu, você não quer, não, né? E essa já era. Pega outra lá.

Rubens traz mais duas.

- Encontrei Calil, um dia desses - diz Yrina.
- Calil...  eis aí um dos bons motivos para eu ter abandonado as ruas.
- Não sai mais, mesmo? Pra lugar nenhum? Nunquinha.
- Não. Não tenho mais nenhum interesse nas pessoas, em estar em seu meio.
- E quando é que você teve, porra? E isso não te impedia na época.
- Acontece que, antes, eu, ainda um tanto condescendente com a espécie, por mais que a convivência fosse desagradável, deletéria, até - e ela era -, eu conseguia extrair alguma coisa daquela chateação toda. As pessoas me aborreciam, enfureciam-me, às vezes, ficava puto com elas e seus patéticos ritos sociais, mas eu transformava aquilo em textos, escritos, críticas. Hoje, nem como antimusas me servem. Nem me aborrecer mais com elas, eu consigo.
- Calil me contou que você conseguiu, enfim, sair de sala de aula. Foi designado para alguma função administrativa, é isso, né?
- É. Andei mexendo uns pauzinhos um tempo atrás e não consegui nada na época - nunca fui bom em mexer pauzinhos. Então, quando já tinha me resignado a terminar meus dias entre a escória, dopado de antidepressivos, uma ex-diretora minha me liga e pergunta se eu teria interesse em ir para o Financeiro da Diretoria de Ensino. Ato reflexo, berrei um belo dum sim.
- Financeiro? E você entende o que de financeiro, além de ser o mão de vaca que é?
- Não entendo porra nehuma. Adotei a filosofia Tiririca, não sei nada de financeiro, mas me levem para lá que eu aprendo.
- E tá gostando? A saúde melhorou?
- Bom, é trabalho burocrático, repetitivo. E ainda é trabalho, então, bom não tem como ser. Mas tenho o silêncio. Um silêncio sepulcral. Dá até pra ouvir as ventoinhas dos computadores a girar. Ainda apanho de algumas tarefas que me dão, mas tenho a tranquilidade para aprender. Nada de gritos, de desrespeito, de desacato, nada desse povinho chucro a quem a lei dá direitos de fidalgo. Em uma semana, todos os transtornos mentais de que eu padecia, ansiedade, depressão, pânico, ataxia generalizada, sumiram, evaporaram, como se nunca tivessem existido. Ficou só uma vaga tristeza, uma tristeza mansa.
- Mas a tristeza sempre foi uma coisa sua, né? Pega outra lá.

"e quando eu não voltar, acenda o mesmo lume de estrelas, que eu deixei no teu olhar"

- Um grande gole à sua libertação, então. - Yrina entornando a nova lata.
- Mas como sabiam os integrantes do The Fevers, a vida nunca nos prometeu uma mar de rosas.
- Sabia... tava demorando. Se não reclamasse, não seria você.
- É que, na minha idade, a gente remenda de um lado e rasga do outro. O corpo é que paga agora, que arca com o merecido descanso da mente. Oito horas sentado à uma mesa, à frente de um computador. Há dias em que as costas doem, os ombros repuxam; em outros, as têmporas latejam ao fim do expediente, talvez pela prolongada e inútil exposição à tela.
- Tô vendo que você ainda acaba voltando pra sala de aula.
- O caralho! Até porque nem existem mais salas de aula. O caralho que volto. Para quem tomava um antidepressivo pela manhã e outro ao ir se deitar, precisar, vez ou outra, tomar 30, 40 gotas de dipirona ao fim do dia é estar no lucro. Num puta dum lucro. Até financeiro, já que dipirona é bem baratinha. E o melhor : pode ser tomada com álcool.

"e aqui no coração, eu sei que vou morrer um pouco a cada dia... mas sem que se perceba, a gente se encontra pruma outra folia".

- Rubens - Yrina já com voz embriagada e sonolenta -, percebeu que esses nossos encontros casuais têm se espaçado cada vez mais? Quanto tempo da última vez? Quatro anos, quatro anos e meio...
- Cinco anos e dois meses - Rubens, matando mais uma lata.
- Hum, você sabe ser carinhoso quando quer, Rubens.
- Eu só forneci uma data precisa, fria, estatística.
- Sei... é a sua maneira de dizer que se lembra, que se importa, que sente falta, sua maneira de ser, enfim, carinhoso. Há quantos anos nos conhecemos, Rubens? Tempo pra cacete, né?

"...como se fosse urgente e preciso, como é preciso desabafar, qualquer maneira de amar varia, e Léo e Bia souberam amar".

- E até hoje você não me contou onde é que o esconde.
- Onde escondo o que, sua maluca?
- Seu retrato de Dorian Gray.
- Há! Há! Há! Você tem certa razão, eu tô mesmo cada vez mais gray, os cabelos, a barba e outros lugares mais pudendos.
- Adoro seus tons de cinza, velhinho.
- Envelheci bastante na aparência, sim.
- Nada.
- Tenho uma hipótese para isso.
- E você sempre não tem? Senta que lá vem história?
- Acredito que olhamos para as pessoas de quem gostamos com os olhos da memória e não com olhos de espelho, uma espécie de afago que fazemos aos que nos são caros. E, claro, acreditando que eles não envelheceram tanto, nos damos o benefício da dúvida de que nós também não tenhamos.

"deixa em cima dessa mesa, a foto que eu gostava, pra eu pensar que teu sorriso envelheceu comigo".

- Comprovando minha hipótese, você também não envelheceu nada aos meus olhos, mudou muito pouco.
- O cacete. Engordei muito.
- Para mim, você está gorda nos lugares certos, nos lugares legais.

Involuntariamente, enrubescem-se as faces de Yrina. Rubor que só ocorre por dois motivos : irritação ou excitação.

- Tá querendo me comer, né, Rubens?
- Adoraria.
- Ainda dá conta do recado, velhinho?
- Não me importaria de falhar tentando. De mais a mais, você não sairia no zero a zero, não ficaria no prejuízo. Afinal, às vezes, fala o falo; às vezes, fala a língua.
- Adoro essa sua macheza tóxica!
- Todas vocês gostam.
- É do Vinicius, né?
- Não, nem sei quem cunhou essa adorável pérola do chauvinismo, mas vai na mesma linha do que, paradoxalmente, de forma nada poética, disse o Poetinha : "enquanto eu tiver língua e dedo, mulher nenhuma me mete medo".
- Mas você morre de medo de mim, não morre, Rubens?

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