sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Eu, um Velho Mimado

Para todos os seus excessos e vícios, o ser humano tem, se não uma justificativa, ao menos, atenuantes, racionalizações. Para todos os seus pecados, o seu próprio Ato de Contrição e autoabsolvição.
Há tempos que um dos vícios com mais adictos pelo mundo, tão disseminado a ponto de raramente ser visto com tal, é o consumismo, o consumo desmedido e desabalado de produtos e serviços. O ato compulsivo de comprar sem a real necessidade do bem adquirido, ou de comprar em quantidades muito maiores da que efetivamente fará uso.
 
Eu tenho um par de tênis bem surrado, um outro, relativamente novo, um de sapato quase virgem e um de chinelo de dedo. E acho muito. Não sou uma centopeia, ora porra. Calça jeans, tenho duas usáveis, e está de bom tamanho, também.
A depender de mim, vivo a dizer isso aqui, o capitalismo naufragaria, ou, no mínimo, teria que se repensar seriamente.
 
No geral, a maioria das pessoas compram exageradamente. O mercado é hábil em transformar as suas necessidades corporativas nas necessidades das pessoas. E elas abraçam e absorvem pantagruelicamente as urgências que lhes são criadas e impostas.
Assim como todos os vícios, os seus portadores, muitas vezes, após passada a euforia de uma nova compra, acabam por se afundar em culpa pela extravagância. Como convencer as paredes do quarto e dormir tranquilo?
 
Nos últimos tempos, tenho escutado muito uma racionalização bem curiosa, até, para a pessoa não se sentir culpada por comprar o que não precisa, até mesmo para gastar o que não pode : mimar-se.
Os adultos, para apaziguarem as suas consciências de compulsivos e perdulários, estão a se sair com essa agora, estão a se mimar.
Amiúde, escuto pessoas dizendo que têm lá, por exemplo, uma prateleira já repleta de perfumes, mas queriam tanto a nova fragrância apresentada na live da influencer... e, poxa vida, trabalham tanto, esforçam-se em suas vidas, fazem tantos sacrifícios, que merecem se dar um presente, um mimo. O mesmo para a "necessidade" de uma roupa nova, uma bolsa, um celular, uma TV.
E dão-se passe livre para comprar mais do que já possuem em quantidade. Endividam-se, muitas vezes.
Mimar-se. Parece até desculpa de bêbado dizendo que toma vinho porque faz bem pro coração, certo? Sim, a priori, sim.
 
No entanto, parece-me, às vezes, que se mimar vai além de ser uma simples desculpa para o descontrole em comprar sem uma concreta precisão. Parece-me, às vezes, que a questão central do se mimar é que essas pessoas estão a autoreconhecer seus esforços, a autopremiarem-se, a autorecompensarem-se.
 
Temos a natural necessidade de sermos reconhecidos por nossos empenhos, qualidades e boas práticas, e até sermos premiados por eles. Mas se não premiados, afinal, no mais das vezes, não estamos a fazer nada mais que nossas obrigações, que, ao menos, vejamos serem punidos e desqualificados publicamente aqueles que não cumprem com elas.
 
Andamos, nós, as pessoas de bem, carentes de reconhecimento. 
Vivemos em um país em que o mérito pessoal é um dos pecados capitais da Bíblia esquerdista, em que a meritocracia foi tornada em discriminação e preconceito. No Brasil da esquerda, exaltar e recompensar o bom, o esforçado, o honesto, o estudioso, é causar constrangimento ao vagabundo.
 
Minha professora da quarta série primária tinha por hábito, ao fim de todo bimestre, premiar os três melhores alunos daquele período. Uma caixinha de chocolates, um livro, uma agendinha, coisas pequenas, simbólicas. Símbolos de reconhecimento e até de agradecimento por sermos bons alunos - uma vez, ganhei um estojo com 6 canetinhas hidrográficas Sylvapen.
Ficávamos, claro, orgulhosos com o destaque dado a nós. E os que não estavam naquele podium não se sentiam ofendidos ou discriminados; antes pelo contrário, ainda mais estudavam para que estivessem em nossos lugares no bimestre seguinte.
Se fosse hoje, a vagabundada do mimimi chegaria em casa se queixando aos pais da professora que discriminara os alunos com "dificuldade de aprender". E, acreditem, essa professora poderia vir a ter sérias aporrinhações.
 
Então, se não somos reconhecidos pelos nossos afincos, por que não, vez ou outra, nós mesmo não reconhecê-los? Por que não, vez ou outra, não nos mimarmos? Pormo-nos ao nosso próprio colo, mimarmo-nos, fazermo-nos um cafuné? 

Então, madrugada dessas, por volta da quatro da manhã, sentado ao sofá tomando um café, à espera do dia raiar e eu acordar o filho e me pôr a caminho do trabalho, peguei-me a olhar para a minha velha caneca de café, de cerâmica esmaltada, dessas grandes, de 300 e tantos ml, de um alaranjado meio terroso. Há anos a tenho, mais de dez com certeza, é a última remanescente de outras três que foram sendo quebradas ao longo dos anos. E repô-las para quê, se não tomo café em duas ou três canecas ao mesmo tempo? Está em perfeitas condições. Não há um único lascado em sua borda, um único trinco ou rachado em seu corpo ou pintura. E não é que me peguei pensando? : preciso comprar outra caneca.
 
Remoí a ideia por uns dias e, então, nesta semana, durante meu horário de almoço, caminhei até uma loja de utilidades domésticas, As Maravilhas do Lar, a cerca de um quilômetro, um quilômetro e meio do meu local de trabalho para comprar a tal caneca.
E comprei.  Não chega bem a ser preta, é mais um grafite escuro, pintura fosca, superfície meio áspera ao toque, uma vez que não esmaltada, 330 ml, R$ 9,90.
 
A caminho do caixa, desviei um pouco a rota e passei pela seção de que mais gosto nesses lugares, a de material escolar e de escritório. Nunca compro nada, mas gosto de olhar a variedade e as novidades do setor. Canetas, cadernos, fitas adesivas, grampeadores, furadores de papel. 
E lá estava : Bic Cristal Fashion 10 cores. Roxa, rosa, marrom, alaranjada, dourada, verde-piscina... Não me são novidade, existem há muito tempo. O preço, porém, capturou minha atenção, R$ 14,90, quando o normal é encontrá-las por aí entre vinte e trinta reais. 
Estava eu a precisar de canetas? De jeito nenhum. Aliás, tenho mais canetas do que jamais vou conseguir usar. Ao longo de décadas em sala de aula, fui recolhendo e guardando todas as canetas perdidas ou jogadas fora pelos alunos, que as recebem gratuitamente da escola e, por isso, não tomam nenhum cuidado em não perdê-las.
Não estava precisando de mais canetas. De jeito nenhum. Mas racionalizei : quem sabe se eu comprar umas canetas de cores diferentes, não acabo me animando mais em escrever? Comprei-as.
 
Então, só à saída da loja, caiu-me a ficha. Eu tinha acabado de me mimar!
Pããããããta que o pariu!!!!! Até o Azarão nessa frescura!
 
Uma caneca e um conjunto de canetas multicores. Fashion, ainda por cima.
Minha alma está mesmo a perigo. Sempre esteve.

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