quarta-feira, 15 de maio de 2024

A Maior Invenção Anti-Humanidade da Humanidade

Pardais, maritacas, andorinhas e demais pássaros gregários, ao entardecer, voltam de sua lida de Darwin para suas árvores-albergue noturnas. Chegam em frenesi, em algazarra. Mas, misteriosamente (ao menos para mim), quando o último do bando se acomoda em seu galho-beliche, algum sábio/ancião da passarada emite algum comando e todos calam os bicos em unanimidade. Vão de 90 a 0 decibéis em um segundo. E durante toda a noite e madrugada não se ouve um só pio, um solitário trinar.
O silêncio absoluto e necessário ao descanso é reconhecido e respeitado pelos emplumados. Só voltam à barulheira com o nascer do sol, quando saem de volta à cata de insetos, de larvas, dos frutos vossos de cada dia.

Os humanos, não. A desgraça do Homo sapiens, não. Quando à noite, quando a maioria de nós, macacos imberbes, ajeitamo-nos em nossos galhos para conversar com nossos familiares, para assistirmos a um filme ou série, para ouvirmos uma boa música em respeitoso e individual volume, para, finalmente, deitarmos e nos pôr ao sono, outros macacos incivilizados, menos que macacos, insistem em desrespeitar o toque de recolher do ciclo circadiano. Os seus - e até aí que se fodam - e, principalmente, o dos outros.

Fazem de tudo (e com grande prazer) a propósito de incomodar os seus vizinhos de árvore (filogenética). Música alta às altas horas, gritaria, risadaria histérica, motos com escapamentos abertos, carros com alto-falantes mais potentes que seus próprios motores, carretas furacão etc etc.

Comecei a ser muito afetado pelo barulho há 20 e tantos anos. Antes disso, tivera a sorte de morar em locais de baixos ruídos externos, toleráveis, e quando um pouco excessivos, ao menos, de curtas durações.

Então, em 2000, ao ter sido aprovado em um concurso de provas e títulos para professor da rede pública do Estado de São Paulo, assumi meu cargo, por falta de vagas em minha cidade natal, no município de Mococa, onde residi por três anos.

Aluguei um pequeno apartamento no terceiro andar de um prédio de doze, um edifício mal-afamado da cidade, a alguns quarteirões da rodoviária. A janela do meu quarto dava para uma pequena travessa, sem praticamente tráfego nenhum, um silêncio só, dia e noite. Contudo, mal sabia o que me aguardava.

Primeiro fim de semana no apartamento, tudo na mais santa paz de uma sexta-feira. Quando, por volta das 20 horas, um barulho brutal começou a esmurrar as paredes, as janelas da sala e do quarto, como a querer arrombar meus tímpanos. Pus a cara à janela e vi que o barulho vinha de uma casa grande e antiga que dava fundos para a travessa. Um forró desgraçado. Ao vivo

Desci e perguntei ao porteiro noturno : ali ficava o Círculo Operário de Mococa e, em todas as noites das sextas e dos sábados, a desgraça promovia arrasta-pés, bate-coxas e mela-cuecas-e-calcinhas para o povo da nefanda terceira idade. Velho tem é que ficar em casa, trocando fraldas dos netos, esquentando as mamadeiras, e não ficar se dando ao desfrute com suas ilusões de juventude.

Perguntei ao porteiro se ninguém do prédio nunca tinha reclamado, nunca tentara tomar nenhuma providência contra aquele absurdo. Disse-me que alguns moradores, sim, mas que nunca surtira efeito algum, pois o Círculo Operário era mantido conjuntamente pela associação comercial da cidade e pela Igreja Católica. Também, confidenciou-me, muitos moradores do prédio eram frequentadores habituais desses embalos de sexta e sábado à noite.

Subi puto da vida. Fechei todas as janelas do apartamento, liguei o ventilador de teto no último para que o vento abafasse um pouco o ruído, aumentei o volume do toca-CD. Inútil. A zabumba do filho da puta marretava sem dó o meu sossego. Otimista - logo vi que, na verdade, iluso -, pensei : sendo um baile para velhos, lá pelas 22 horas para tudo, é servida a canja e cada um segue às suas casas.

O caralho!

Aprendi que, dificilmente, o proibidão da terceira idade terminava antes das três da manhã; algumas vezes, indo até além.

No dia seguinte, fui a uma DP e fiz boletim de ocorrência por perturbação do sossego. Dois ou três meses depois, um oficial de justiça me notificou de que a Polícia Técnica iria ao meu apartamento naquele fim de semana, no sábado, no horário relatado por mim, para fazer a medição dos ruídos.

Foram, mediram a putaria com seus decibelímetros, disseram-me que logo fariam e encaminhariam o laudo para as autoridades competentes e, respondendo à minha pergunta, adiantaram que sim, que o ruído excedia em muito o permitido.

Meses depois, houve uma audiência no fórum com a presença das partes, o acusador e o réu, este último, um representante da associação comercial, um gordo sebento e, na certa, de pinto pequeno. Como eu supus, a audiência fora apenas pro forma, só para cumprir tabela.

Como dissera o porteiro, o Círculo Operário tinha as costas quentes, e até ungidas, uma vez que também sobre a proteção da igreja. Foram “condenados” a pagar umas tantas cestas básicas a uma instituição de caridade da escolha do réu. E só.

Perguntei se não havia a obrigatoriedade da adequação do local às atividades realizadas sistematicamente nele, a exigência de um isolamento acústico. Em tese, sim, disse-me o juiz. Mas isso envolveria mudanças na estrutura do prédio para a instalação do material acústico e de ares-condicionados, uma vez que ele passaria a funcionar de portas e janelas fechadas. No entanto, o prédio fora tombado pelo patrimônio histórico, o que impossibilitava tais adequações.

E o martelo foi batido - como quase sempre - em favor do criminoso, do infrator da lei.

Por fim, acabei desenvolvendo uma certa paciência para com o barulho, mais uma resignação, de fato; contava com 33 anos na época, era ainda um pouco mais tolerante, a vida ainda me animava um pouco. Quando o barulho excedia o insuportável, anestesiava-me com duas garrafas de vinho Canção, ou saía em longas caminhadas pela madrugada. Ambas as coisas, geralmente.

Em 2003, removi-me de volta a Ribeirão Preto. Com alguma grana guardada, um emprego estável e nem cogitando a ideia de um dia vir a me casar, comprei um pequeno apartamento. De novo, no terceiro andar, agora de um prédio de mesmo número de pavimentos; dois quartos, banheiro, sala, cozinha, área de serviço, 47 metros quadrados.
 
Tudo corria muito bem no primeiro mês em minha nova e, julgava eu, definitiva morada - depois dali, o cemitério. Eu estava até a garfar uma boa buceta casada, que pescara numa daquelas salas antigas de bate-papo UOL, do tempo da internet discada, de quando só acessávamos a rede mundial de computadores ou da meia-noite às seis da manhã, nos dias úteis, ou a partir das 14 horas do sábado, períodos em que nos era cobrado um único pulso telefônico, independente do quanto passássemos conectados.

Buceta cabeluda, felpuda, 45 anos; na época, uma coroa, para mim que tinha 35; hoje, seria uma ninfeta. Trabalhava em uma firma contábil no mesmo bairro, não muito longe do meu apartamento. O marido, além de ter um ganha-pão normal, duas a três vezes por semana, atuava à noite, por hobby, como árbitro de futebol de quadra, futebol society ou coisa que o valha. Duas ou três vezes por semana, ela saía do trabalho direto pro meu apartamento.

Então, numa manhã de sábado fui despertado por um barulho de máquinas, um barulho surdo e grave, um barulho de motores, de esteiras rolantes. Em frente ao prédio, havia uma antiga marmoraria desativada há anos, com problemas de embargo, de herança e sei lá mais o quê. Pois feito um vulcão tido como extinto, voltara a funcionar a pleno vapor, praticamente 24 horas por dia. O barulho incomodava, sim, mas devido à sua natureza e constância acabou por ficar como um ruído de fundo, como, acredito, o barulho do mar para quem mora em cidades praianas. Acostumei-me.

Mais algum tempo, talvez uns dois ou três meses, não me lembro bem ao certo, numa porção de mata localizada atrás da marmoraria, entrou em funcionamento uma boate, a Samânea. De música eletrônica. A céu aberto. Para os viadinhos putz-putz poderem campear à vontade, leves, livres e soltos. Funcionava a partir de sexta-feira. Dez vezes pior que o forró de Mococa.

Fiz várias reclamações na Prefeitura. Recebi várias respostas via correio de que o estabelecimento fora autuado e multado. Depois da terceira reclamação e terceira mesma resposta, sem que nada de efetivo tivesse ocorrido, desisti.

Mais : um guarda-noturno começou a fazer sua ronda pelas redondezas, passando em frente ao prédio a cada 40 ou 50 minutos. Não aquele tipo de guarda-noturno que muitos de nós conhecemos na infância, aquele senhor de bicicleta que passava a assoprar seu apitinho. O tal tinha a maior cara de mano e andava numa moto barulhenta em cuja traseira havia uma sirene parecida com a de uma ambulância ou viatura policial. Em substituição ao velho apito, o filho da puta disparava a sirene toda vez que passava em frente ao prédio. Acordava várias vezes na madrugada por conta da sirene. Cheguei a esperar o cara passar na frente do prédio e conversei com ele. Inventei que no apartamento abaixo do meu havia uma idosa doente, que não podia ser perturbada à noite e que ela pedira para eu conversar com ele. Inútil, é claro.

Tal era meu incômodo nessa época que cheguei a escrever um conto chamado FBI, fobia do barulho iminente, no qual o protagonista, flagelado pelo barulho e sem ter a quem ou onde recorrer, torna-se um serial killer de perturbadores do silêncio e do sossego.

Então, comecei a estreitar laços com a mulher que hoje é minha esposa já há 20 anos. Em pouco tempo, estava mais dormindo no apartamento dela que no meu. Levei um ultimato : que rumo estávamos tomando? Para resumir, em 2006, vendemos, cada qual, nossos apartamentos de solteiros e compramos juntos um maior. De novo, no terceiro andar, de novo num prédio de três andares, onde moramos por catorze anos.

Um apartamento muito bom, confortável, três quartos (já a pensar num filho), uma boa sacada para se sentar ao fim da noite, perto de supermercados, farmácias, padarias, quitandas etc. Um único problema, logo a ser descoberto : os vizinhos do primeiro andar. Ambos cabeleireiros, mantinham seu salão na mesma rua do prédio, no outro lado da rua, duas casas acima. Não raro, ao fim do expediente, ali mesmo ficavam a tomar cerveja com amigos e a escutar música alta na calçada. Cheguei a chamar a polícia algumas vezes, que passava, descia da viatura, conversava e, assim que iam embora, o som alto voltava.

Por sorte, alguns meses depois, eles tiveram que se mudar, tanto do apartamento quanto do salão. Segundo a síndica do prédio, foram despejados por falta de pagamento de aluguel e de condomínio de ambos os imóveis.

Foi nessa época, de novo transtornado pelo barulho, que fui apresentado por um colega professor à maior maravilha tecnológica da triste e turbulenta era moderna : os protetores auriculares feitos em espuma da 3M. Confeccionados em espuma moldável e expansiva, têm como uso original o de equipamento de proteção individual para pessoas que trabalham em ambientes de ruídos insalubres (acima de 85 dB), como fábricas, pista de aeroportos etc.

Sem muita esperança ou crença na eficiência deles, comprei dois pares numa farmácia e fui testá-los. Seguindo as instruções da embalagem, enrolei-os entre os dedos, espremendo-os até atingirem a espessura necessária a serem introduzidos no ouvido. Uma vez introduzidos, foram se expandido, voltando aos seus volumes originais e bloqueando o ruído externo.

Uma sensação indescritível de alívio. Sem os exageros aos quais eu costumo me dar, o protetor auricular foi um divisor de águas, apresentou-me a um novo mundo, o mundo do silêncio. Todo o barulho desaparece, ou se torna um simples murmúrio. Somos capazes de ouvir nossa própria pulsação, nossos próprios pensamentos. Fico pensando, às vezes, do quanto de sofrimento eu poderia ter me poupado se os tivesse descoberto há mais tempo. Mas como diz o ditado, antes tarde.

Hoje, desde 2020, moro em outro apartamento, no mesmo bairro, apenas algumas quadras acima do anterior, a esposa pegou meio que implicância do antigo pelo fato de não ter elevador e, segundo ela, já estarem a lhe faltar as pernas pra subir três andares carregada de compras, por exemplo.
No atual apartamento, onde estamos desde a pandemia e, espero, que para sempre, não temos grandes problemas com barulho. Mesmo assim, viciei-me nos protetores, uso-os diariamente para dormir, uma vez que sempre tive o sono muito leve. Não saio de casa sem um par deles em hipótese alguma, seja quando vamos para um fim de semana na casa da sogra ou mesmo quando saímos em viagens nas férias.

São a maior invenção anti-humanidade da humanidade de todos os tempos.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário